Se serve de consolo para os que se sentem um pouco acima do peso, fora dos padrões considerados ideais ou saudáveis, o conceito de “corpo perfeito” não é absoluto, nem no tempo nem no espaço. A depender da época ou do lugar de onde se fala, aquilo que hoje se considera inaceitável, como barriga saliente e consumo de gordura, já foi visto como sintoma de boa saúde e alimentação adequada.
Assim, como mostra a historiadora Denise Bernuzzi de Santanna em seu precioso livro Gordos, Magros e Obesos: uma história do peso no Brasil, a forma natural como julgamos corpos considerados obesos é na verdade fruto de longa, controversa e ainda inacabada disputa em variados níveis – econômico, político, social e cultural.
Para horror dos vigilantes do peso, que hoje detêm o poder de ditar quantos milímetros de cintura são necessários para fazer de alguém um obeso, a culinária brasileira já foi dominada pela banha de porco. Na São Paulo do início do século 20, por exemplo, comia-se galinha “afogada em banha”, como a ressaltar-lhe o sabor e os benefícios à saúde. A banha era tão importante, enfatiza Denise, que seu preço servia de referência para a situação econômica dos brasileiros.
Outro alimento que hoje é vilão, a manteiga, já foi sinal de ascensão social. “No começo do século 20, consumir manteiga já podia indicar o pertencimento do consumidor a uma herança familiar e social julgada sofisticada”, afirma Denise. O mesmo se deu com o açúcar e os ovos.
A magreza, por sua vez, era ligada a epidemias, ao flagelo da seca e à miséria de milhares de brasileiros, o que inspirava preocupação e repugnância em um país que pretendia se modernizar e prosperar. Por essa razão, havia remédios específicos para “aumentar as carnes”, e havia restaurantes que anunciavam sua capacidade de engordar os clientes.
Isso não significa, contudo, que a sociedade não fosse implacável também com os glutões. Ao mesmo tempo em que os considerava saudáveis e endinheirados, num país em que a fome ainda era uma realidade em vários lugares, a imprensa – principal fonte do livro – tratava de promovê-los à categoria de fenômeno circense quando seu apetite era, digamos, pantagruélico. Numa época em que não se perdia uma boa piada, mesmo à custa das extravagâncias alheias, os obesos eram alvo preferencial do humor de revistas e jornais. Mas também o eram os muito magros, geralmente colocados lado a lado com os gordos, para acentuar a disparidade entre ambos e duplicar o resultado humorístico. “Por toda parte, admirava-se um estômago capaz de receber quantidades colossais de alimento, tal como era invejável possuir excelente apetite e, sobretudo, poder saciá-lo”, escreve Denise. Além disso, a literatura erótica valorizava as mulheres gordas: “A luxúria preferia corpos arredondados e ricos em curvas”. Para disfarçar a magreza, mulheres recorriam a enchimento para seios e nádegas, vendido em lojas especializadas.
À medida que o País se industrializava, porém, os obesos começaram a ser relacionados à improdutividade – algo indesejado na dinâmica sociedade urbana que se desenvolvia. É nos anos 30 e 40 do século passado que se estabelece a ciência da nutrição, cujo objetivo é, como escreve Denise, ensinar a comer e “educar a vontade e os hábitos”. Talvez esteja aí, como sugere a historiadora, o ponto de virada da imagem dos obesos e da obesidade – que passa a ser tratada como um estorvo social e econômico. Criou-se um índex de alimentos que se relacionam a esse mal, como doces e massas, e essa lista desde então não para de crescer e gerar controvérsias.
Tal ambiguidade com que a obesidade foi tratada desde sempre no Brasil contemporâneo é a linha mestra da pesquisa de Denise, pois é essencial para compreender que o padrão estético pretende ser uma ditadura do “peso ideal”, contra a qual sempre haverá rebeldes – vistos ora como uma afronta à beleza e à saúde, ora como heróis da resistência.
Se no passado os obesos eram considerados saudáveis, embora dignos de piada, hoje os gordos são relacionados a doenças, mas também a bom humor e, principalmente, à liberdade, pois, de acordo com a imagem que se faz deles, sentem-se à vontade para comer o que bem entendem, sem se preocupar com a balança ou com o que vão dizer deles – o sonho secreto de muitos dos que lutam contra a própria natureza para se manter na linha.
Enquanto certa literatura psicanalítica vincula obesidade a carência afetiva e problemas emocionais, outra interpretação os considera indivíduos bem resolvidos, indiferentes às regras do que se considera “boa alimentação” – de resto um conceito bastante subjetivo. Como mostra o excelente livro de Denise, a questão da obesidade suscita honesta e pertinente preocupação médica, mas, ao mesmo tempo, constitui pretexto para a recorrente luta política pelo controle dos corpos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.