Nelson Freire franze a testa ao ver um garoto de 14 anos trancado em um quarto para estudar dez, doze horas por dia, submetido a um treino de expectativas e metodologia chinesas. Com suor, os obstáculos de um Rachmaninoff podem ser todos transponíveis, mas a vida que se perde trancado em um quarto jamais será recuperada. E o que é a interpretação de um artista senão a expressão das experiências que ele vive, o impacto das emoções que o atingem?
Freire é a atração desta quinta-feira, 29, em um palco fruto de um sonho. Cansado de bater em portas de empresas que apostassem em um teatro em plena Mata Atlântica de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, o advogado Samuel MacDowell de Figueiredo apostou sozinho, com a ajuda financeira de amigos bem-intencionados, na existência do Centro Cultural Baía dos Vermelhos. Há ali um teatro para 900 pessoas construído em seu terreno particular sem um centavo de incentivos fiscais. Nelson Freire não poderia estar em um ambiente mais apropriado.
Ao jornal “O Estado de S. Paulo”, o músico que está preparando um novo disco para 2017 com obras de autores pouco executados, como o pianista e compositor alemão Moritz Moszkowski e o compositor norueguês Christian Sinding, fala por e-mail sobre o desapego às partituras, sua relação com a música, o sucesso de Mozart como “vendedor de discos” em pleno 2016 e dos garotos prodígios trancados no quarto, estudando por dez horas seguidas. “O que eles vão transmitir? O estudo?!”
Nelson, qual será o seu repertório para essa apresentação em Ilhabela, bem perto da noite de ano-novo?
É o mesmo programa que fiz em Belo Horizonte quando fui homenageado pelos meus conterrâneos com o título de Doutor Honoris Causa. Bach, Beethoven, Villa-Lobos e Chopin.
Algo que sempre quis lhe perguntar: a música é algo que propõe uma viagem ao centro de si mesmo, certo? Essa viagem não pode ser, de alguma forma, perigosa? Não pode isolá-lo de um mundo importante ou se tornar uma fuga dele?
É verdade que a música veio a mim muito cedo e eu via nela um refúgio, um bálsamo e uma viagem ao mundo da fantasia que me parecia melhor que o real. Meus primeiros anos foram difíceis, pois eu tinha muitos problemas de saúde como asma e alergia a quase tudo. Mas não vejo a música como uma perigosa alienação. Ser músico é sempre estar com a sensibilidade mais aberta possível e lidar com todas as emoções que a música proporciona. A gente acaba quase como se autopsicanalisando porque estamos sempre lidando com o subconsciente. E tudo que vivemos passa para a música. Por isso eu vejo com preocupação jovens ou não jovens que passam o dia estudando 10 ou 12 horas por dia. O que eles vão transmitir? O estudo?! Se olharmos para a vida dos grandes compositores, vemos que todos tiveram uma vida intensa de tristezas, alegrias, amores, dificuldades. Talvez Beethoven seja o compositor que mais sentimentos expressou.
Acredita que os músicos eruditos deveriam se libertar das partituras? A própria interpretação não seria beneficiada pelo ato exclusivo da execução, sem
passar pela tensão da leitura? Ao ver grupos de sopro ou cordas tocando em formações populares, por exemplo, com músicos de posturas mais soltas no palco, podemos questionar se as orquestras e solistas não estariam se comunicando melhor se decorassem as músicas que tocam.
Antes de Liszt, não existia o de costume de se tocar de cor. O fato é que, na música popular, não há o perigo de se perder, pois improvisar faz parte. Na música erudita, no entanto, está tudo escrito porque, quando há mais de uma pessoa no palco, é quase certo que um deles vai se perder. Conta-se que Rachmaninov se apresentava certa vez com o violinista Fritz Kreisler em um recital em Nova York, os dois tocando sem partitura. De repente, Kreisler se perdeu e perguntou a Rachmaninov: “Onde estamos?”. E o compositor e magistral pianista respondeu, laconicamente: “No Carnegie Hall”. Eu prefiro tocar as músicas de cor, mas não tenho nada contra o ato de se usar a partitura, se for melhor para a performance. Richter dizia que deixou de tocar muita coisa em público por medo de esquecer. No final, ele tocava sempre por música mesmo as peças mais conhecidas como o Estudo op.10 n.3 (vulgo Tristesse).
Nelson, essa sua frase é curiosa: “Prefiro errar certo do que acertar errando”. Qual dos dois modos é mais praticado pelos músicos eruditos hoje em dia, na sua opinião?
Eu, quando vou a algum concerto, em geral, sempre aprendo alguma coisa seja quando erram acertando ou acertam errando. É desse último jeito que vejo o que não se deve fazer.
Qual a sua relação com a música popular? Há um grande cantor ou cantora de quem gosta muito? Com qual deles você tocaria se tivesse oportunidade?
Gosto de música popular, de música folclórica de outros países. Cigana, espanhola, jazz, bossa-nova. Sou um grande fã de Ella Fitzgerald, de Art Tatum, de Errol Garner. Dos brasileiros Tom Jobim, Bethânia, Nana Caymmi e Elis Regina.
Um dado interessante: o artista que mais vendeu discos (CDs) em 2016 no mundo foi Mozart. Isso graças a uma caixa com 200 álbuns lançados em outubro na Europa pela Deuscht Grammophon. Como o senhor recebe essa notícia?
Mozart é o músico do Céu! Uma genialidade sobre-humana. Como esse gênio pode ser enterrado como indigente numa vala qualquer em Viena? A vida é maravilhosa, mas pode ser muito cruel. Mas a música de Mozart é eterna e está acima das coisas desse mundo em que vivemos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.