Um romance do escritor argentino Ricardo Piglia é como um novelo que, ao se desenrolar, surpreende o leitor com suas inúmeras e diferentes camadas. Com isso, consolidou-se como herdeiro de grandes nomes da literatura de seu país, como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Inquieto, radical, Piglia era um gigante literário. Na tarde de sexta-feira, 6, foi anunciada sua morte, aos 75 anos, vítima de uma parada cardíaca, segundo noticiou o jornal Clarín. A morte já o cercava, pois, em 2014, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença que ataca os neurônios controladores dos movimentos musculares.
Piglia era considerado um incansável pensador da literatura, posição que dividia com seu grande amigo Juan José Saer, também já falecido. Eclético, escreveu não apenas romances, mas também críticas, ensaios e roteiros, além de apresentar programas de TV e de atuar como professor de literatura da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, durante 15 anos.
Nascido em Adrogué, província de Buenos Aires, em 24 de novembro de 1941, Piglia teve como primeira atividade literária dirigir a coleção Série Negra, especializada em ficções policiais, e lançou na Argentina escritores como Raymond Chandler e Dashiel Hammett. A partir daí, tornou-se um produtivo pesquisador da literatura argentina, com ensaios importantes sobre Roberto Arlt, Jorge Luis Borges e Macedônio Fernández. Inquieto, sempre se preocupou em recuperar escritores que estavam esquecidos e, principalmente, redefinir imagens cristalizadas.
Publicou contos na década de 1960, quando desenvolveu uma curiosa linha de raciocínio – para ele, uma narrativa curta sempre conta duas histórias: uma visível que esconde outra, invisível. “O conto reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta”, afirmava Piglia.
A consagração, no entanto, veio com Respiração Artificial, em 1980. Romance polifônico, é ambientado durante a ditadura argentina, iniciada em 1976, e apresenta como narrador Emilio Renzi, revelador da verdadeira história do país e personagem que voltaria em outras obras.
A investigação permitiu que Piglia exercesse seu talento ao revelar os meandros de uma sociedade construída a partir de uma violência camuflada, que torna inertes seus habitantes. Com isso, conseguiu expor o arbítrio e a violência em todo o seu horror. Em enquete realizada com 50 escritores argentinos, Respiração Artificial figurou na lista dos dez melhores romances da história literária do país.
A realidade inspirava a escrita de Piglia que, a partir de fatos verdadeiros, conseguia construir histórias tão eletrizantes que nem pareciam baseadas em acontecimentos reais. É o caso de Dinheiro Queimado, título brasileiro para Plata Quemada, lançado originalmente em 1997 e editado aqui pela Companhia das Letras. O ponto de partida foi um assalto a um carro-forte, acontecido em Buenos Aires, em 1965. Para oferecer aos leitores uma escrita vibrante, Piglia pesquisou documentos confidenciais, cercando-se de detalhes que incriminavam policiais e políticos corruptos.
Outro crime, agora no pampa argentino, tornou-se o mote para Piglia retornar ao romance noir em Alvo Noturno, lançado em 2010. Na verdade, trata-se de uma trama policial sociológica – como já fizera em Respiração Artificial e Plata Quemada, Piglia revelou-se aqui inquieto, radical, insatisfeito ao delinear uma história que, além de transcorrer em ritmo ágil e direto, é complexa graças à sobreposição de impressões sobre o assassinato.
Já em Formas Breves, de 1999, Piglia reuniu textos que lhe permitem transitar na fronteira entre a ficção narrativa e o exercício crítico. São relatos em que trata tanto da relação entre psicanálise e literatura como da importância social embutida nos romances policiais. Em ambos, apresenta conclusões surpreendentes – se, no primeiro, afirma que James Joyce conhecia profundamente o trabalho de Freud, no segundo, acredita que o mundo do crime é o universo com que os homens devem dialogar nos tempos atuais.
Desde que foi diagnosticado com ELA, Piglia apressou-se em escrever sua autobiografia, Diários de Emilio Renzi, dividida em três volumes. O primeiro, Anos de Formação, foi publicado em 2015, enquanto o segundo, Anos Felizes, saiu em setembro passado – nenhum foi traduzido ainda no Brasil. A ideia de utilizar Renzi como protagonista veio durante a filmagem do documentário 327 Cadernos, no qual o diretor Andrés Di Tella acompanhou Piglia na leitura de seus diários escritos desde a adolescência.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.