Quem é Elena Ferrante? É uma escritora italiana, que vem se mantendo na crista da onda já faz um bom tempo, desde que lançou livros como “Crônicas do Mal de Amor” e o best-seller (na Itália) “Um Estranho Amor”, no início dos anos 1990. Mas Elena explodiu mesmo no mercado com o início da sua “Série Napolitana”, uma tetralogia, cujo primeiro romance, “A Amiga Genial”, foi um sucesso absoluto desde que saiu em 2011 na Itália e logo cruzou as fronteiras do país.
Esse primeiro livro preparou o terreno para os seguintes, que foram sendo lançados em sucessão: “História do Novo Sobrenome” (2012), “História de Quem Vai e de Quem Fica” (2013) e “História da Menina Perdida” (2014). No Brasil, os livros vêm saindo pela Biblioteca Azul, com tradução de Maurício Santana Dias. O último deve chegar às livrarias ainda este ano.
Acontece que ninguém sabe direito quem é Elena Ferrante. Ela própria diz que se trata de um pseudônimo. Mas não se trata de uma reclusa como Thomas Pynchon ou J.D. Salinger. Concede entrevistas, ainda que por e-mail. Seu editor italiano, Sandro Ferri, é o único a conhecer sua identidade. Os jornalistas se comunicam com Elena por intermédio de Ferri. A justificativa para essa discrição é singela: “Queria que os livros se impusessem sozinhos, sem a minha proteção”, diz a escritora.
Autora de sucesso, anônima, talvez reclusa, quem sabe morando numa ilha isolada… Na sociedade do espetáculo não existe nenhum estímulo maior para a curiosidade do que alguém famoso que recusa os holofotes. O anonimato de Elena Ferrante, em especial depois do êxito mundial da Série Napolitana, passou a ser um “case” jornalístico. Pior: soava como um insulto à imprensa.
Desafiado, o jornalista Claudio Gatti entregou-se a uma minuciosa investigação sobre a identidade real de Elena. E anunciou num artigo publicado no caderno cultural do jornal Il Sole 24 Ore: Elena Ferrante era, na verdade, Anita Raja, tradutora que trabalhava na mesma editora que publicava os livros de Ferrante, a Edizione E/O, de Roma. Para chegar a essa conclusão, Gatti usou método pouco ortodoxo. Pesquisou a contabilidade de Anita, e a de seu marido, o também escritor Domenico Startone, e verificou que as finanças do casal tiveram um pico por ocasião da publicação de “A Amiga Genial”. Mantiveram-se no topo ao longo dos outros romances da série, enquanto o casal comprava casas de luxo e apartamentos à beira-mar.
O assunto provocou polêmica na Itália. Escritores e artistas revoltaram-se contra o método invasivo do repórter e a imprensa se defendeu com o argumento de que é seu direito descobrir a verdade. A adrenalina subiu ao máximo quando, através do Twitter, Anita Raja escreveu apenas: “Confirmo. Sou Elena Ferrante”. Verificou-se logo que era um perfil falso. A própria Elena desmentiu. Através de e-mail, claro. Mas ficou a suspeita. Persiste até hoje.
Tanto assim que o sisudo Corriere della Sera, um dos jornais mais tradicionais da Itália, dedicou número especial do seu suplemento literário à questão da identidade de Elena.
Há hipóteses variadas. A mais aceita é que Elena seria, mesmo, a tal tradutora, Anita Raja. Mas há teorias mais engenhosas. Há quem sustente que o “autor” seria de fato o casal Anita e Startone, cujo estilo foi examinado e comparado aos livros da Série Napolitana. E existe quem vá além. Como a massa de informações contida nos livros parece grande demais para ser proveniente de uma pessoa só, Elena Ferrante seria apenas o nome de um grupo de trabalho, que escreveria os livros em conjunto. Outra conjectura sustenta que todo um trecho da vida da personagem Elena Greco se assemelha, ponto por ponto, à da historiadora Marcella Marmo, casada com um neto de Carlo Levi, o famoso autor de Cristo Parou em Eboli, filmado por Francesco Rosi.
Para “piorar”, Elena Ferrante, seja quem for, acaba de lançar um livro de memórias (ensaios, cartas e entrevistas concedidas ao longo de 25 anos) que, supostamente, lança luzes sobre sua vida real. Chama-se Frantumaglia, palavra do dialeto napolitano muito usada pela mãe da autora para expressar uma angústia profunda originária de sentimentos contraditórios. Ainda não foi lançado no Brasil.
Tudo isso pareceria apenas futrica literária, coisa do nosso tempo frívolo, em que o superficial prevalece sobre o que realmente importa. Mas acontece que tanto frisson tem por base um fato simples e sólido: os livros de Elena Ferrante são muito bons. Excelentes. Na verdade, excepcionais. Sinceros, profundos, corajosos, jorros narrativos tão sedutores que deixam o leitor à mercê, sempre pedindo mais e lamentando quando cada volume termina. Torna-se uma dependência. Do bem. Quem quer que os escreva exibe domínio raro da narrativa. Assim, vamos deixar a autora, ou autores, em paz e ocupemo-nos dos livros.
O início
A história, basicamente, é a de duas personagens, amigas de infância em Nápoles. Tudo começa, no primeiro livro, quando o filho de Lila Cerullo telefona a Elena Greco pedindo ajuda, pois a mãe desapareceu sem deixar traços. Elena se lembra de que esta era uma antiga aspiração de Lila: sumir do mapa, dissolver-se no ar, por completo, como se nunca tivesse existido. Para frustrar o plano da amiga, só existe uma solução: escrever tudo. Deixar registrada, por escrito, a história das duas. É a arma da palavra, a única que resta quando tudo o mais virar pó.
Dessa forma, e sob esse pretexto, a narrativa se estende por quatro volumes, cerca de 1.500 páginas. Três deles já foram lançados no Brasil pela Biblioteca Azul, selo da Editora Globo: “A Amiga Genial”, “História do Novo Sobrenome” e “História de Quem Foge e de Quem Fica”. Falta o último, “A História da Menina Perdida”, prometido para o segundo semestre.
A narradora, Elena Greco, conta sua história, e a de sua amiga Lila Cerullo, da infância à maturidade. Ambas nascem em famílias pobres num bairro de Nápoles, em 1944. Elena é filha de um contínuo, o pai de Lila é sapateiro. As duas famílias lutam com dificuldades e os filhos estão destinados ao trabalho, não ao estudo. Mesmo que deem provas de dotes extraordinários de inteligência, como Lila, ou de determinação inflexível, como Elena. As duas leem. Leem demais, e escrevem. Dessa forma, começam a se distinguir da realidade do bairro.
Lila é a mais brilhante – e não por acaso o primeiro volume se chama “A Amiga Genial”. No entanto, Elena é quem prosseguirá os estudos, enquanto Lila passa a empregar seu talento na sapataria do pai.
O bairro – o “rione”, como se escreve em italiano – é, obviamente, um microcosmo da Itália do pós-guerra. De Nápoles, de maneira mais focada. Devastada, porém reerguendo-se e reestruturando-se, surge uma sociedade muito diversificada, competitiva, agressiva, voltada para si e para sua identidade própria. No caso, tipicamente napolitano, o bairro abriga essa pequena burguesia, à qual pertencem as duas meninas, mas também gente mais pobre ou mais endinheirada. Além, é claro da inevitável família camorrista (Camorra, a “máfia” napolitana), e que terá grande importância na história das duas, assim como na de outras pessoas do bairro.
As personagens
Ao longo dos volumes, Elena Greco fala ora mais de si, ora mais de Lila, em geral das duas ao mesmo tempo. O foco dos livros está na relação entre elas, um relacionamento que ambas pressentem ser para toda a vida, embora não isento de conflitos. Pelo contrário, há tanto simbiose como competição entre as duas. Elena suspeita que Lila controla sua vida e tem sempre a primazia em tudo, mesmo quando vivem distantes. Ao parar de estudar, Lila pede emprestado os livros da amiga, para não ficar atrás. Nessa amizade há também muito afeto, muita ternura, rivalidade e momentos de ódio. Um dos encantos da prosa de Elena Ferrante está no enfrentamento sem medo dessas contradições humanas. As personagens são complexas, ambivalentes. E, sim, à maneira napolitana, muito muito passionais.
Elena Greco e Lila Cerullo prosseguem, da infância à velhice, através de casamentos feitos e desfeitos, amantes, segundos enlaces, filhos, êxitos e fracassos – acompanhando de perto e sofrendo com as mudanças da sociedade italiana. A discussão e o engajamento político – em especial durante a fase mais radical das Brigadas Vermelhas e do assassinato de Aldo Moro – fazem parte do cotidiano das amigas, cada uma delas encontrando sua maneira de reagir aos desafios do momento.
Dessa forma, a tetralogia é sobre a vida de duas pessoas, e das outras que as cercam, com todas as suas nuances e intensidade. É, talvez, acima de tudo, relato pungente sobre a condição feminina num mundo extremamente machista. Mas não se trata de um rosário de queixas e sofrimentos, e sim das estratégias de sobrevivência das mulheres nesse mundo hostil.
Há uma diferença entre as amigas, nesse ponto. Enquanto Lila permanece no bairro, Elena, a narradora, sai para o mundo. Estuda, forma-se, publica livros e se casa com um professor, filho de um notável intelectual de Florença. Ou seja, chega ao topo, ou próximo dele, enquanto a outra permanece anônima, em seu rincão provincial. No entanto, a história das duas não termina aqui, pois o “rione” exerce poderoso efeito gravitacional, forte e insistente como são as primeiras impressões sensuais da adolescência.
É preciso dizer que, entre tantas outras coisas, a tetralogia é, também, um romance de formação, além de ser um livro sobre a escrita. Muito a contragosto, a intelectual Elena admite que o talento literário de Lila é muito maior que o seu. Em várias passagens, mostra como esse dom de Lila lhe permite, com algumas pequenas mudanças, fazer de um texto apenas bom algo atraente, belo e incomparável. Lila tem o “toque”, o duende, o estilo, que é o sonho de todo escritor. No entanto, é a outra que vive da pena. Um dos pontos altos do romance é quando Elena lê um longo diário que Lila lhe confiara (claro, sob a promessa de não lê-lo em hipótese alguma) e nota, com espanto, a escritora extraordinária se exercitando ao descrever os menores acontecimentos de sua vida e do bairro.
Noutra ocasião, Elena, já autora publicada, percebe que seu livro tudo devia à leitura de um pequeno conto de infância escrito por Lila – A Fada Azul. Outro grande momento do romance é quando Elena entrega esse original a Lila, que então trabalhava numa fábrica de salames, e vê o destino que a autora precoce dá ao seu texto de menina.
Enfim, o que não falta é emoção aos romances de Elena Ferrante. Nem sentido de timing, já que cada capítulo termina com um pequeno “gancho” que torna urgente a leitura do seguinte. E, dessa forma, um livro leva ao outro, enquanto, seduzidos, vamos sendo levados pela mão por essa Sherazade contemporânea.
O dom
Se não falta emoção, sobra também reflexão, já que narrado por uma intelectual dotada do dom da escrita. É também um roman fleuve, histórico, no sentido de ser testemunho das condições sociais do seu ambiente, dos efeitos que estas produzem sobre os personagens e as mudanças que vão ocorrendo na História (com agá maiúsculo).
Nesse sentido, acompanha o treinamento na violência e na resistência de mocinhas de um bairro pobre de Nápoles em pleno pós-guerra. Dureza que tanto Lila quanto Elena saberão usar em proveito próprio. Em particular, no confronto com intelectuais do norte rico e esnobe da Itália. Aliás, a tensão, latente ou aberta, entre Norte desenvolvido e Sul subdesenvolvido será um dos subtextos da saga. Elena fala o dialeto napolitano, mas esmera-se no italiano clássico, a língua oficial do país, para não ser discriminada. Nos momentos de raiva, é o dialeto que ressurge em sua boca.
Isso para dizer que, como acontece em toda boa narrativa ficcional (mas apenas nas boas, para valer) é toda a História de um país que passa pelo relato das vidas particulares dos personagens. A Série Napolitana é encantadora. Grande literatura, seja quem for, ou forem, seu autor ou autores. No fim, sentimo-nos tão familiares de Elena Greco e Lila Cerullo que precisamos acreditar na sua existência real. E que Elena Ferrante seria apenas alguém que conta para nós a história das duas. O romance funda a sua própria verdade. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.