Citando Machado de Assis, Ariano Suassuna dizia que o povo brasileiro era ótimo, enquanto o Brasil oficial não passava do nível burlesco e caricato. Como não dar razão ao genial autor de Auto da Compadecida e Romance da Pedra do Reino neste momento nacional, ainda mais quando comparamos a baixaria explícita de cada dia ao que de melhor existe no País, a cultura popular, tão bem expressa neste bonito filme, Memória em Verde e Rosa, de Pedro von Krüger?
Mais que documentário convencional sobre uma escola de samba, Memória em Verde e Rosa prefere ser uma imersão na cultura da mitológica Estação Primeira de Mangueira. Tendo como guia o compositor Tantinho, o filme percorre as ruas do morro, conversa com seus moradores e sambistas, toma o pulso de um cotidiano bastante diferente do das “elites” e classes médias brasileiras, até por seu espírito comunitário.
Uma das histórias engraçadas é a de Dona Neuma, figura símbolo do matriarcado mangueirense (ao lado de Dona Zica, mulher de Cartola), que deixava seu telefone na janela para ser usado por quem precisasse. Outros tempos, sim. Mas também outra mentalidade, outros valores.
Uma cultura é feita de gestos como esses. É feita, em especial, pela arte que for capaz de gerar. Nesse sentido, a Verde e Rosa é privilegiada. Detém em sua galeria integrantes do panteão da música brasileira como Nelson Cavaquinho e Cartola. Além de personagens como o mestre-sala Delegado, pastoras, baianas como a veterana Suluca, compositores com Hélio Turco Seu e Nego, o próprio Tantinho e um músico sofisticado como Paulão 7 Cordas.
O filme documenta o povoamento do morro, e evoca a composição demográfica que se reflete no original toque da bateria da Mangueira. Ela traz ecos do calango e da folia de reis, trazidas por negros do interior e do Estado de Minas e, dessa hibridação com os ritmos originários da capital e com os atabaques do candomblé, nasce o samba original da Verde e Rosa.
Registra também o lado negativo, o branqueamento da escola, o mercantilismo do carnaval. Celebridades e gringos tomam espaço da comunidade e o samba enfraquece. Nada escapa de todo ao poder corrosivo da grana, mas a Mangueira, com a força de sua cultura, dá prova de resistência. Serve de alento, em tempos difíceis.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.