Dificilmente se verá nesta edição do É Tudo Verdade filme tão perturbador quanto Uma Vida Alemã. Longo depoimento de Brunhilde Pomsel, secretária de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, trata-se de uma imersão, sem anestesia, no ambiente vicioso do 3.º Reich. Nesse sentido, lembra o depoimento de Traudl Junge, auxiliar do Füher, em Eu Fui Secretária de Hitler. Brunhilde (1911-2017) tinha 103 anos quando gravou. É mostrada sempre em superclose, rosto vincado pelo tempo, fala firme, memória intacta, lucidez.
Não que sua fala prime pela sinceridade, desconfia-se. O tom é defensivo. “Ninguém sabia de nada, ou sabia pouco. O país inteiro era um imenso campo de concentração”, diz em certo momento. A fala é entrecortada por imagens de época ou discursos de poderosos. Seu chefe, Goebbels, é ouvido em gravações exaltando a guerra total e o extermínio dos judeus. Eram falas públicas e não privadas. Pode-se inferir que se o povo não tinha conhecimento total do que acontecia, pelo menos fazia uma ideia bastante aproximada do contexto. Mas, reagir? Brunhilde diz que qualquer ação significaria colocar a própria vida em risco. “Eu era uma das covardes”, diz sem sabermos se de fato ela queria ter reagido ou não.
Em outro ponto, perguntam pelo seu sentimento de culpa. Admite que não tem, “a não ser que se culpe toda a população alemã por permitir que aquele governo tenha chegado ao poder”. Pelo seu raciocínio, ela teria de ser avaliada pelo mesmo metro de responsabilidade de uma dona de casa alemã, que viveu aquele período e nada fez contra o regime nem a favor dele.
No entanto, ela o serviu. Brunhilde era secretária de um advogado judeu quando foi sondada para trabalhar com um dignatário nazista. “Fiz isso por dinheiro”, esclarece. Depois, subiu na carreira a passou a se reportar de maneira direta a Goebbels. Esteve com ele de 1942 a 1945, integrando o petit comitê do bunker, no qual o alto comando nazista se instalou com a iminência da chegada do Exército Vermelho a Berlim. Sua descrição dos dias finais é forte e vivaz, com o medo dos “desumanos” soldados russos e a notícia dos suicídios de Hitler e Goebbels.
Dirigido por Christian Krones, Olaf Muller, Roland Schrotthofer e Florian Welgensamer, o filme é um documento histórico. O diretores deixam a personagem falar, colocam a câmera junto ao rosto para que suas expressões faciais também “falem” e eventualmente contradigam o que diz em palavras. O tema da responsabilidade individual diante de crimes de Estado fica por ser meditado pelo espectador.
Homenagem
O É Tudo Verdade presta tributo ao cineasta francês Jean Rouch (1917-2004) no centenário de nascimento. Apresenta nesta quarta-feira, 26, às 17h, no Cinearte, sua obra-prima, Eu, Um Negro. Quinta-feira, 27, às 14h, no Centro Cultural São Paulo, seu legado será debatido pelo cineasta francês Philippe Constantini (codiretor em alguns filmes de Rouch) e Mateus Araújo Silva, da USP.
O nome de Rouch é ligado ao documentário etnográfico, mas esse rótulo reduz o âmbito de um cinema muito original. Em Eu, Um Negro, de 1959, habitantes de um bairro de Treichville, na Costa do Marfim, representam, a seu pedido, personagens de uma vida ideal. Assumem nomes do estrelato do cinema de então, como Dorothy Lamour, Tarzan e Eddie Constantine. Como se vê, as fronteiras entre ficção e documentário são problemáticas e tênues há muito tempo. Jean-Luc Godard era fã desse filme e diz que o influenciou, em especial em seu longa de estreia, Acossado.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.