Variedades

Sentidos de uma voz

A paixão, as melodias, os coloridos. Foi com La Traviata de Verdi, na versão filmada por Franco Zeffirelli nos anos 1980, que Diana Damrau, entrando na adolescência, descobriu o que a ópera poderia oferecer. “A força daquela mulher que ousa viver em liberdade, que sabe da proximidade da morte mas ousa amar uma vez mais, aquilo me deixou uma marca profunda”, ela conta. Àquela altura, transformar-se em uma soprano, uma das mais celebradas da atualidade, não era nem mesmo uma possibilidade distante. Mas, com o tempo, surgiu o sonho – e ele se tornou realidade.

Diana Damrau canta nesta segunda, 1, e terça, 2, na Sala São Paulo, ao lado de seu marido, o baixo-barítono francês Nicolas Testé, e da Orquestra Acadêmica Mozarteum, formada por jovens músicos brasileiros regidos pelo maestro Carlos Moreno. Juntos, interpretam árias e duetos de óperas como Romeu e Julieta, O Barbeiro de Sevilha, I Puritani, La Gioconda e Porgy and Bess. “Eu queria mostrar um repertório romântico, povoado de belas melodias. Na minha mente, está sempre uma pessoa que vá assistir a trechos de ópera pela primeira vez. E eu quero que ela seja tocada por tudo o que o gênero oferece”, ela diz, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

A ópera faz parte da vida da soprano desde cedo. Nascida em Günzburg an der Donau, pequena cidade no sul da Alemanha, às margens do Rio Danúbio, Damrau acostumou-se a ver os pais ouvindo durante horas as principais obras do gênero. Tudo parecia um pouco tedioso, ela reconhece, até que conheceu a Traviata. Com o passar dos anos, tornou-se claro o desejo de estudar canto. Duas professoras foram fundamentais. Carmen Haganu deu a ela “a fundação real e a atenção ao básico”. Hanna Ludwig, por sua vez, “acendeu o fogo artístico dentro de mim”.

O “fogo artístico” talvez explique a intensidade que a crítica internacional, desde cedo, identificou em suas interpretações. “Minha percepção da ópera é de que, essencialmente, ela trata da condição humana. Tudo em uma ópera se refere àquilo que é humano e, portanto, toda obra é sobre nós. O tempo passa, as histórias eventualmente podem soar datadas, em descompasso com a sensibilidade moderna. Mas é aí que entra a música. O modo como ela atribui sentido ao texto dá àquilo que está sendo narrado outra dimensão. Se a maneira como lidamos com sentimentos como amor, ciúmes, ódio, paixão ou desejo muda, a música está ali garantindo que sempre haverá uma conexão com as histórias que estão sendo contadas.”

O início da carreira de Damrau se deu com papéis de Mozart, peças sacras de Bach, canções alemãs. E óperas do chamado bel canto. É um período específico da história da ópera na Itália, no qual compositores entendiam que o sentido dramático que nasce das relações possíveis entre texto e música estava escondido na beleza da melodia. A consequência, talvez involuntária, deste foco no canto foi que a beleza da voz – e a agilidade técnica, em especial nas notas mais agudas – acabou em alguns casos assumindo papel mais importante do que o sentido dramático dos personagens.

“O bel canto não é um território fácil, mas significou tudo para mim. Foi com ele que entendi como a voz poderia funcionar como instrumento musical”, diz Damrau, relembrando do início da carreira. “As questões são muitas. Primeiro, você precisa usar toda a extensão da voz e isso é um desafio técnico tanto quanto dramático, pois o sentimento que você expressa pode ser leve, denso, lírico, muitas vezes mudando de uma hora para outra. E há também a questão da agilidade. De novo, há um lado técnico, a capacidade de emitir todas aquelas notas. Mas o grande problema está em encontrar a medida da expressão, sem cair no exibicionismo. Você precisa lembrar que o compositor quis dizer algo com aquela música, que há uma história a ser narrada. É a tal da volta ao básico. Se há voz, então há texto. E se há texto, há significado. A função do cantor é achar a expressão atrás das notas.”

Na busca pelo que Damrau chama de “liberdade para encontrar a expressão de um papel”, é preciso levar em conta também o modo como a voz se transforma. Nos últimos anos, ela tem mudado de repertório – e se não abandonou totalmente as heroínas do bel canto, em geral jovens apaixonadas, começou a incorporar ao seu repertório papéis mais pesados, de autores como Giuseppe Verdi e Richard Strauss. “É uma transição das mocinhas para as mulheres mais maduras”, ela brinca.

E dá como exemplo Rosina, personagem presente tanto em O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, como em As Bodas de Fígaro, de Mozart. Em Rossini, é uma jovem que ajuda o pretendente a tramar contra o tutor que quer impedi-los de estar juntos. “Já em Mozart, é uma mulher que se vê presa em um casamento infeliz. Ao longo da ópera, ela lida com isso de formas diferentes, se transforma, e resolve apostar no amor.”

Essa transformação é dramática, mas também vocal. “É por isso que a mudança de repertório envolve diferentes aspectos”, ela explica. “Veja o caso da Traviata. Sempre foi um sonho cantar o papel. E um bom tempo antes de interpretá-lo pela primeira vez, eu sentia que seria capaz de fazê-lo de uma maneira bonita. Mas isso seria suficiente? O que me fez esperar foi justamente a busca de um amadurecimento que me permitisse me aprofundar no papel e, além da beleza do som, mostrar o que ele tem de mais dramático, mais sombrio. À medida em que o tempo vai passando, você se dá conta da presença de desafios novos na hora de recriar um papel.”

É às voltas com essas dimensões que Diana Damrau se define hoje. “É preciso ter em mente um caminho. A voz muda, você muda. E eu tento tratar tudo isso com naturalidade. Porque a voz não é um fim em si mesmo, é um instrumento para aquilo que é o mais importante: a apresentação. Uma récita de ópera é um momento único, uma experiência que se dá no tempo, e jamais pode ser reproduzida. E isso é especial.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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