Quando as vocalistas da banda As Bahias e a Cozinha Mineira puxaram os versos de uma canção de Belchior, na noite de sábado, 29, no palco Draga Dragão, montado no encontro da Avenida Almirante Tamandaré com o mar, não tinham como saber que dariam início a uma grande homenagem ao cantor e compositor cearense nascido em 1946, em Sobral, cidade do interior do Estado. Ali, para a banda, era uma homenagem ao artista ainda vivo, embora exilado por vontade própria.
Belchior havia se tornado um mito, um dos principais cantores e compositores da música popular brasileira que havia desaparecido. Fugia de credores, de fãs, do mundo ao seu redor. Era, contudo, um artista misterioso. E vivo. A notícia da morte de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, aos 70 anos, na mesma noite na qual Raquel Virgínia e Assucena Assucena, as vocalistas de As Bahias, puxaram o coro de “Na Hora do Almoço”, transformou a homenagem em um tributo.
O festival Maloca Dragão, realizado pelo quarto ano consecutivo nas ruas de Fortaleza, próximas à praia de Iracema, transformou-se em outro depois da notícia da morte de Belchior. O que era uma festa da arte e da cultura a céu aberto, transformou-se em uma celebração de um dos maiores artistas da música surgidos no Estado.
Nos bares, só se ouvia Belchior. Nas camisetas do público presente, ele, Belchior. Nos palcos, era a vez dele também. As Bahias, involuntariamente, haviam dado início a uma série de homenagens que o “rapaz latino-americano” receberia na noite seguinte.
O Baiana System, liderado por Russo Passapusso, seria a última banda a se apresentar no mesmo palco que, na noite anterior, havia sido tomado pela homenagem de As Bahias a Belchior. A banda de Salvador, conhecida pelos shows explosivos, fez uma celebração em luto. Seu axé-rock potente vestiu preto. Seus pulos e sua vibração reverberavam um adeus. Passapusso citou Belchior, uma influência indireta para a banda, mais por sua linguagem do que por sua estética, um incontável número de vezes. “Viva Belchior”, gritava o músico, ao microfone, ovacionado pelo público presente.
E assim se encerrou o Maloca Dragão, com Belchior em cada esquina, seja cantando, seja estampando camisetas. Fosse nos palcos, aos berros pelos artistas, ou nos muros, com versos rabiscados por todos os lados. Embora tenha deixado Fortaleza aos 21 anos em direção ao Rio de Janeiro, Belchior era filho do Ceará. Ele tinha se despedido sem dizer adeus. Havia uma dor com fundo amargo na boca – ninguém havia tido a chance de dar adeus devidamente ao artista.
Nascido nas proximidades de Sobral, a 240 quilômetros de Fortaleza, o músico se despediu do outro lado do País, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Suas canções reverberavam pela antiga região portuária de Fortaleza. Em menos de 24 horas, o Maloca Dragão acrescentou uma atração em sua programação: o show Viva Belchior – Tributo dos Artistas Cearenses ao Rapaz Latino-Americano, iniciado na primeira hora de segunda-feira, dia 1.º de maio.
Seria emocionante – e foi. Seriam 15 atrações a subir no mesmo palco, reunidas de pronto, mas não foram. A primeira delas, o compositor e arquiteto Fausto Nilo, cancelou sua participação por estar emocionado demais com a partida do amigo. Sua ausência, talvez, tenha falado mais do que qualquer coisa que ele pudesse ter dito ao microfone. Belchior, amigo de tantos presentes ali, faria falta. Era difícil lidar com a ausência, agora que ela não era mais temporária e, sim, permanente.
Artistas contemporâneos ao cantor e compositor e outros de uma nova geração revezaram-se no palco. Cantaram clássicos, como Medo de Avião (com Daniel Peixoto), Velha Roupa Colorida (interpretada por Rodger Rogerio), Na Hora do Almoço (João do Crato), Sujeito de Sorte (Paula Tesser), Apenas Um Rapaz Latino-Americano (Soledad), Comentários a Respeito de John (Lidia Maria), Alucinação (Rodrigo Ferreira), Como Nossos Pais (Nayra Costa).
Passava das 3 horas quando o palco esvaziou, quando o público foi embora e deixou de ocupar as ruas de Iracema. Depois de seis dias, a região foi silenciada pela madrugada. Ecos da homenagem a Belchior permaneceram, ao fundo, nos ouvidos de quem celebrou o artista cearense como ele certamente desejaria. Autoexilado, Belchior partiu sem voltar. Sem dizer adeus uma última vez. Entre lágrimas e sorrisos, ele ganhou a homenagem que merecia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.