James Rhodes, de 42 anos, é um virtuoso pianista inglês estabelecido, seis discos lançados, apaixonado por Bach e orgulhoso da própria execução da Chacona. Ele também é produtor e apresentador de TV: seu trabalho mais recente, para a BBC, consistiu em passar alguns dias em Toronto, no Canadá, colhendo pistas sobre o mítico pianista Glenn Gould (morto em 1982), outro de seus ídolos. Rhodes também lançou um livro de memórias, Instrumental, que chega agora ao Brasil pela Rádio Londres.
Sua história, desse jeito, já seria interessante, mas ela ganha outros níveis – o mais sombrio deles é que Rhodes sofreu abusos sexuais na infância, por cinco anos, e em decorrência disso teve de lidar continuamente nos últimos 30 anos com tiques, hipervigilância, estresse pós-traumático, alcoolismo, problemas com o controle do uso de drogas, automutilação, surtos de raiva, danos permanentes à coluna, pulsões e tentativas de suicídio e uma sensação permanente de paranoia, insegurança e vergonha. Ele fala com uma honestidade brutal e comovente de tudo isso na primeira parte do livro.
O outro nível, e esse brilhante e luminoso, é que ao lado de pessoas que lhe deram suporte, foi a música que salvou a sua vida – especialmente a Chacona de Bach, versão para piano com transcrição de Busoni, que ele ouviu pela primeira vez aos 7 anos.
No início da adolescência, o amor pela música lhe levou às teclas do piano, ainda amador. Mas depois de excursões complicadas pelo Reino Unido para cursar faculdades, uma carreira no mercado financeiro, um casamento e um filho (Jack, a quem Rhodes dedica o livro), recaídas e visitas a clínicas psiquiátricas, ficou quase uma década afastado do instrumento.
As coisas começaram a mudar quando ele entrou em contato com o agente de outro de seus ídolos, Grigory Sokolov, em busca de uma nova parceria comercial que pudesse reaproximá-lo da música de alguma forma. O agente pediu para Rhodes tocar umas peças de Chopin e ficou impressionado – tanto que lhe mandou a Verona estudar com um professor de verdade. Poucos anos depois, em 2009 – entre recaídas e passagens por clínicas, de novo -, ele lançava seu primeiro disco (Razor Blades, Little Pills, Big Pianos) e, enfim, começava a encontrar algum tipo de paz na vida.
Nesses últimos oito anos, foram cinco discos, um contrato com o selo roqueiro da Warner, diversos filmes e séries sobre música clássica para a BBC, e o começo do que ele chama de uma revolução no gênero. “Penso que a música clássica precisa de uma revolução. A educação musical certamente precisa. É um processo longo, demorado e doloroso, e vai levar muitos anos. A própria ideia de chamar o Reino Unido de uma nação civilizada enquanto, ao mesmo tempo, ela não permite que crianças aprendam sobre música ou toquem instrumentos é profundamente irônica e muito incômoda para mim. Estou fazendo o que posso para ajudar a mudar isso”, diz Rhodes, em entrevista – ele dá mais detalhes, no mesmo estilo bem-humorado e levemente hiperbólico, em Instrumental.
Rhodes enfrentou um processo sofrido na Justiça britânica para publicar o livro. Sua ex-mulher e mãe de seu filho tentou bloquear a publicação por considerar que a publicidade dos fatos – da história de abuso sexual infantil sofrida por Rhodes – poderia causar um impacto prejudicial no filho, então com 12 anos. O caso acabou na Suprema Corte, em maio de 2015, numa decisão a favor da obra.
“Foi uma loucura”, diz Rhodes. “Custou £ 2 milhões em taxas legais e quase fui banido de falar ou escrever sobre o meu passado em qualquer meio no mundo inteiro. Foi assustador, uma perda de tempo, energia e bom senso. É risível demais que eu faria qualquer coisa para machucar o meu filho – ele é a pessoa que mais amo em todo o universo.”
Cada capítulo do livro começa com um comentário de Rhodes – que carrega seu estilo calça-jeans-e-tênis tanto para os seus concertos, afastando-o da rigidez comum associada ao gênero, como para o seu texto. Ele oferece anotações sobre suas peças musicais favoritas (leia abaixo), incursões bem-humoradas que abrem um caminho interessante para o leitor não familiarizado com o gênero.
Há um novo livro no caminho para Rhodes (além de How To Play Piano, de 2016). “É como um On The Road para um músico clássico, um diário de turnê, lidando com as viagens e o trabalho na estrada ao lado da maluquice que é minha cabeça.”
Como concertista, ele nunca esteve no Brasil, mas promete uma visita nos próximos dois anos. “É o lugar número 1 entre os que eu nunca estive, mas quero conhecer. Principalmente pela feijoada. Pelas praias. E pelas pessoas. Além disso, Senna está no meu top 10 de heróis.”
INSTRUMENTAL – MEMÓRIAS DE MÚSICA, MEDICAÇÃO E LOUCURA
Autor: James Rhodes
Trad.: Luis Reyes Gil
Ed.: Rádio Londres (288 págs., R$ 47,50)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.