O sucesso imediato de um espetáculo, especialmente quando se trata de uma obra de comédia, nem sempre é bom presságio. O elenco corre o risco de se acomodar na graça que já está posta a priori, o ritmo costuma perder-se em função dos apartes da plateia e a vaidade de ser querido e aplaudido em cena aberta compromete, muitas vezes, a zona de insegurança necessária para o trabalho do artista. Pagliacci é uma peça amada pela plateia. Capaz de conquistar-lhe desde o prólogo até os momentos finais. Mas a afeição declarada, neste caso, só tem feito robustecer a criação da Cia LaMínima, que comemora os seus 20 anos de criação.
Em Pagliacci, repete-se toda a graça que o público se acostumou a ver nas criações do grupo criado por Domingos Montagner e Fernando Sampaio: sua devoção ao repertório clássico do palhaço, assim como sua capacidade de reinventar essa graça milenar e demonstrá-la viva, perto de nós. Mas há um elemento dissonante e surpreendente nesse espetáculo, uma nostalgia que se expressa tanto na temática escolhida quanto na ausência de Montagner – é o primeiro espetáculo da companhia sem o ator, que morreu em 2016, durante as filmagens da novela Velho Chico.
A ópera homônima de Ruggero Leoncavallo serve de esteio para a trama. Aqui, assim como no libreto do compositor italiano, uma trupe de saltimbancos vaga pelas estradas e tem sua trajetória interrompida por um amor extraconjugal. Naturalmente, as tintas são menos carregadas do que na criação lírica. As agruras dos amantes servem de pretextos cômicos – oportunidades para a sucessão de mal-entendidos e desencontros típica das farsas. Da mesma maneira, o entrecho carrega o tom espirituoso das comédias de costumes que tanto moldaram a tradição brasileira do fim do século 19.
Vale dizer que, em quaisquer das situações, Fernando Sampaio consegue extrair o melhor. Engraçadíssimo, seu palhaço Silvio conquista a imediata adesão do espectador, encantado pela graça que ele extrai essencialmente da fisicalidade. Ainda que sua composição vá além – abrindo espaço para uma faceta terna e apaixonada, misto perfeito de pierrô e arlequim. Seu desencanto amoroso é exposto sem artifícios, como na cena em que os dois amantes manipulam um pequenino acordeom, mínimo, e rememoram a ária mais famosa da ópera de Leoncavallo.
A comédia sem freios de Carla Candiotto também merece menção. Enérgica e vigorosa, sua Strompa é um contraponto perfeito à masculinidade embotada de Canio (Alexandre Roit), o dono da companhia. Ao lado de Silvio, ela encarna um manifesto pela velha palhaçaria, a arte que tenta resistir aos apelos do bom gosto. De um lado, os velhos palhaços e seus truques; do outro, o humor refinado, enfeixado por um enredo algo dramático que dê propósito e grandeza à montagem. Eis o conflito exposto em Pagliacci: Canio quer a modernização da arte, deixando para trás a tradição do circo.
Assinada por Luís Alberto de Abreu, a dramaturgia tropeça justamente na ambição de plasmar no texto esse enfrentamento entre o popular e o requintado. Se os momentos de comédia rasgada se realizam plenamente, o mesmo não se pode dizer do drama de consciência da personagem Nedda (Keila Bueno), que sonha alcançar a liberdade e atingir a plenitude livrando-se de um casamento infeliz. O drama não convence e trai uma pieguice desnecessária, que só macula aquilo que há de verdadeiramente sentimental na obra.
Sem perder o ritmo de comédia, a encenação desenhada por Chico Pelúcio, conhecido por seu trabalho com o mineiro grupo Galpão, acentua o tom melancólico ambicionado por esse Pagliacci. O diretor traz os telões pintados do velho circo-teatro, usa com pompa o contraluz, manipula formas e sombras que invocam discretamente a estética de Federico Fellini: o sorriso entre lágrimas de Giulietta Masina em Noites de Cabíria (1957); a discussão sobre a arte morta dos clowns no documentário Palhaços (1970), o tom caótico e colorido de Roma (1972).