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Biografia mostra Paul McCartney em suas vitórias e fragilidades

Os anjos de branco nunca ficavam doentes, muito menos aquela mulher cheia de poderes que Paul McCartney chamava de mãe. Mary McCartney sabia que algo não ia bem assim que as dores nos seios deixaram de ser normais. Enfermeira durona do Hospital Geral de Liverpool, ela se rendeu a uma consulta. Quando ouviu o médico dizer que deveria ser internada às pressas, sentiu a sentença de morte. Mary olhou para os filhos Paul, 14 anos, e Michael, 12, e lamentou a uma amiga: “Ah, eu não queria deixar os meninos ainda.” Antes de partir para o hospital, de onde não voltaria, limpou a casa da melhor maneira e lavou e passou todas as roupas da família. Só restaria da mãe, em poucos dias, o cheiro de saudade.

Mais do que devastar Paul, a partida repentina de Mary, em 31 de outubro de 1956, aos 47 anos, ajudou a construir sobre sua personalidade afável uma película impermeável que delimitaria seu território proibido. Ao mesmo tempo em que experimentava emoções em níveis de profundidade ainda não atingidos por um garoto, e que em pouco tempo ganhariam vida exterior em forma de canções, Paul aprenderia a operar sua genialidade com cautela e a defender seus interesses com estratégia, charme e ambição. Apenas uma flecha atravessaria sua couraça e o tornaria exposto, trazendo-o de volta à condição humana: mesmo quando estivesse no topo do mundo, Paul McCartney iria sentir as angústias da insegurança.

Seria mais uma das muitas biografias de um ex-Beatle se Paul McCartney – A Biografia, de Philip Norman (Ed. Companhia das Letras), não fizesse o serviço da atualização histórica e da compreensão tridimensional que o passar do tempo permite. Há muitas histórias conhecidas, outras muitas melhoradas, um outro tanto inéditas, mas o melhor é tê-las na perspectiva equilibrada de um biógrafo que caminha mais próximo do verossímil do que dos exageros. Até porque o verossímil de um Beatle será sempre um exagero por natureza. “O Paul McCartney real é muito diferente do Paul McCartney da imagem”, comenta Norman à reportagem. “Conhecemos o homem maravilhoso, talentoso, genial. O real é inseguro e sempre insatisfeito.” Mais do que apaixonado por aquilo que faz, seria Paul um artista insaciável. “Apesar de ter um grande homem como pai e um irmão próximo, ele vai sempre querer mais. Paul segue no palco muitas noites por ano porque ainda quer mostrar do que é capaz para seu público.”

A fraqueza seria complementar e bem-vinda na formação de uma banda de jovens inseguros de Liverpool se Paul não fosse colidir com outro especialista em incômodos emocionais. Se Paul era inseguro, John Lennon atingia momentos patológicos de incertezas. Chegava a ficar até altas horas da madrugada sentado na imensa cozinha branca do apartamento de Dakota com seus três gatos de estimação, intrigado com a quantidade de versões que as obras de Paul ganhavam. “As músicas de Paul são sempre regravadas”, ele dizia para Yoko Ono, ruminando sentimentos. “Nunca regravam as minhas.” Yoko tentava amenizar: “Você é um bom compositor. Só não compõe o tipo de coisa mais fácil”.

Mas até que a história colocasse Lennon e McCartney em flancos opostos dentro de um mesmo grupo, muitas das 800 páginas da biografia de Norman seriam escritas. “Não há crueldade em Paul, ele é um ótimo ser humano e não se tornou um monstro como outras pessoas do show biz”, contemporiza o autor quando questionado se seu personagem se revelaria maldoso em algum episódio. O caso não é de maldade, mas de autoafirmação – uma luta que começa bem antes de existir o próprio rock-n-roll.

Era 18 de junho de 1942, exatos 75 anos hoje, quando chegou ao mundo o primeiro filho dos McCartneys. Era uma criança em estado de “asfixia branca”, com deficiência de oxigênio no cérebro e que parecia não respirar. Antes que o obstetra o decretasse morto, a parteira, católica e amiga de Mary, ajoelhou-se na fé. “E depois de alguns momentos, ele voltou à vida”, escreve o biógrafo, em um raro deslize de sua narrativa geralmente cética – a não ser que ele tenha checado a informação com o próprio Deus. A declaração de seu pai, que chegou minutos depois ao hospital, foi mais terrena: “Quando o ergueram, ele parecia um pedaço horroroso de carne vermelha”.

Aos 13 anos, Paul ganhou um trompete de aniversário. O pai não tinha nenhuma intenção naquele gesto, a não ser a de ver o filho inserido nas turmas descoladas de Liverpool. “Se você tocar alguma coisa, filho, sempre vai ser convidado para as festas.” Aos 14, antes de perder a mãe, ele estava na plateia do Empire Theatre de Liverpool para ver o rei do skiffle, Lonnie Donegan. Ao sair, pegou o trompete, levou na loja e trocou por uma guitarra.

Uma leitura dos prováveis motivos da colisão Lennon-McCartney pode ser feita no decorrer da narrativa de Norman. Os dois rapazes eram formados pelo mesmo material genético: dor, solidão e carência afetiva. Assim como Paul, Lennon perdeu a mãe muito cedo e de forma trágica, atropelada por um carro. Quando as personalidades habitam extremos opostos, as fraquezas se complementam e se tornam força. No caso dos Beatles, eram uma bomba-relógio. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

PAUL MCCARTNEY A BIOGRAFIA
Autor: Philip Norman
Tradução: Claudio Carina, Rogério W. Galindo
Editora: Companhia das Letras (856 págs., R$ 89,90)

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