Variedades

Inocência e morte

Um novo prédio de luxo em Buenos Aires está próximo de ser entregue aos futuros moradores. A história começa no dia 31 de dezembro e a chegada do feriado retarda ainda mais a conclusão da obra. Enquanto isso, os novos proprietários passam por lá, acompanhados de decoradores e arquitetos, tentando embelezar sua unidade ainda inabitável, ao mesmo tempo em que pedreiros tentam finalizar a obra.

O grande salto narrativo, que transforma o romance Os Fantasmas (Rocco) em uma trama memorável, está na natural presença desses seres estranhos naquele ambiente. Pouco assustadores e muito inconvenientes, eles gargalham e gritam como balões estourando sem razão aparente. E, embora flutuem (como é de sua natureza) e apresentem o corpo inteiramente marcado por uma cor branca opaca, os fantasmas são apenas notados por uma família de chilenos, que vivem ilegais no país e ocupam provisoriamente o último andar do edifício em obras.

Escrito em 1987 e publicado quatro anos depois, Os Fantasmas é uma das principais criações do escritor argentino César Aira. Considerado um dos grandes nomes da atual literatura de seu país, Aira prima pela controvérsia – pouco afeito a dar entrevistas aos seus conterrâneos, ele radicalizou em outra obra, Dicionário de Literatura Latino-Americana, na qual afirmou ser uma fraude um dos ícones da escrita argentina, Julio Cortázar. “Ele foi, para todo os argentinos, uma iniciação, mas, ao retornar a seus textos já em um período mais maduro, descobre-se que não era um escritor muito bom. Eu o admirava, mas agora me parece um mau escritor. Talvez seja o segredo dos escritores iniciadores”, escreveu ele.

Polêmicas à parte, Aira é dono de uma prosa original. Em Os Fantasmas, ele descreve em detalhes o ambiente no qual se movem os personagens. Suas descrições demoradas e detalhadas da luz e do calor argentino causam estranheza à primeira vista, mas, quando a trama se prende à relação entre a família chilena e os fantasmas (que, supostamente, são os antigos proprietários da construção que antes existia naquele espaço), Aira constrói uma atmosfera que a revista New Yorker comparou a uma pintura metafísica de De Chirico, por convidar o leitor a um olhar mais demorado sobre a obra.

As artes visuais, aliás, são de grande interesse de Aira, autor do ensaio Sobre a Arte Contemporânea, no qual relata como trocou a intenção de ser um novo Rimbaud e de ganhar um prêmio Nobel quando descobriu o trabalho do artista francês Marcel Duchamp – nesse dia, conta, descobriu a “inutilidade de escrever livros” e da necessidade de fazer “outra coisa”. Sobre a força de suas paixões, ele respondeu às perguntas do jornal O Estado de S. Paulo.

Por seu estilo literário, parece que, em Os Fantasmas, nada ocorre de relevante até que, no final, há uma reviravolta: uma trama que foi sendo construída de maneira imperceptível. Como foi seu trabalho de escrita?

Em todos os meus livros, o processo básico é a improvisação. Não tenho um plano prévio, apenas uma ideia, com todas as possibilidades de desenvolvimento da história em aberto. Nesse livro, a ideia foi uma pergunta: quanto estamos dispostos a pagar por aquilo que queremos? Quis levar a aposta ao máximo, ou seja, a jovem protagonista da história é convidada para uma festa como não verá outra em sua vida. Mas, para participar, tem de estar morta. Ela passa o romance todo avaliando se vale a pena. E eu com ela. Somente na última página decidi o que fazer.

O romance reúne elementos do real e do fantástico, mas não aparecem a surpresa nem a expectativa. Por quê?

Ao colocar fantasmas em cena, quis fazer o contrário do habitual nos contos de fantasmas: em lugar de um velho castelo em ruínas, imaginei um edifício em construção; em lugar de uma meia-noite de tempestade, um radiante dia de verão; e, em lugar de aristocratas decadentes sinistros, coloquei operários humildes. Foi um experimento, inserir elementos realistas nas convenções do fantástico para ver o que ocorria.

Como a ficção e a realidade transitam com a filosofia como equilíbrio?

Não diria filosofia: cheguei a detestar o charlatanismo dos filósofos. A literatura me parece mais honesta. Procuro manter a tensão do relato, mas não posso evitar que aqui e ali surjam alguns ensaios isolados. Como vou improvisando à medida que escrevo, quando me surge uma teoria mais ou menos relacionada com a história que estou narrando, eu a insiro no texto. O que faz com que meus livros pareçam divagações de alguém que está “pensando em voz alta”. Ou melhor, “deixando que a caneta pense”.

A literatura tem utilidade social?

Cada escritor oferece uma definição diferente de literatura. Suponho que muitos a considerem um instrumento de transformação social ou de conscientização política. O que é bom, mas não é o meu caso. “Que floresçam minhas flores”, como disse Mao Tsé-tung. Para mim a literatura é um jogo. Um jogo de inteligência e imaginação, que não têm outra função senão proporcionar esses dois prazeres do homem civilizado: ler e escrever.

Você estabelece um limite enquanto escreve?

Sempre procuro manter a maior liberdade. Parece fácil porque, ao escrever, estamos sós e ninguém sabe o que estamos fazendo, você pode fazer o que lhe der vontade. Mas é preciso lutar contra muitos hábitos e a preguiça mental, limites que nos impomos ainda contra nossa vontade. Mas, à força de tentar, acredito que estou me aproximando da liberdade total.

De que forma você expressa no romance sua visão da realidade?

Como todos os tímidos e melancólicos, sempre vejo a realidade ameaçadora, como um animal feroz a ponto de se lançar sobre mim. Escrever foi uma maneira de manter esse animal controlado, pelo menos simbolicamente.

Sua paixão por Marcel Duchamp pode ser a chave secreta da sua literatura hoje?

Duchamp foi uma paixão por um artista infinitamente passível de interpretação e infinitamente misterioso. Com o tempo, a paixão se tornou um hobby: continuo comprando e lendo livros seus, como os filatelistas compram selos. Mas sua obra não teve uma influência direta sobre mim. Foi mais a sua pessoa, seu mito, que se tornaram modelo para mim.

Com frequência, seus romances terminam com finais tão espetaculares quanto desconcertantes. Eles poderiam ser considerados também uma sabotagem de todas as páginas precedentes?

Ocorre que, no corpo do romance, eu me envolvo tanto com teorias e descrições que existe muito pouca ação. E, quanto já estou cansado da história e quero terminá-la para começar outra, lembro que os leitores querem que aconteça alguma coisa, e então faço com que tudo ocorra nas últimas páginas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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