Em 2003, o ator português Ricardo Pereira veio ao Brasil e por aqui se estabeleceu. Ao longo desse tempo, dividiu-se entre personagens portugueses e brasileiros na TV, sem abandonar a carreira também no cinema e no teatro. E formou sua família no País: os três filhos – Vicente, Francisca e a recém-nascida Julieta -, de seu relacionamento com a também portuguesa Francisca Pinto, nasceram no Rio. A porta de entrada foi a novela Como Uma Onda, de Walther Negrão (2004). Na época, Ricardo, que já era ator de TV, teatro e cinema, tinha um trabalho para fazer no Brasil e resolveu visitar o Projac, no Rio. “Coincidentemente, entrei na sala de uma pessoa que estava fazendo uma pesquisa de atores portugueses. Eles já tinham meu material, porque, dois anos antes, teve uma outra novela, Esperança, e fiz teste lá em Lisboa”, lembra o ator de 37 anos, em entrevista ao Estado. Ricardo ficou entre os três finalistas, mas o ator Nuno Lopes, amigo dele, acabou ficando com o papel de José Manuel.
“Só que eles tinham guardado o tape para futuros trabalhos e, dois anos depois, precisavam de um português protagonista. Foram rever esse material, só que, antes de me ligarem, entrei no gabinete dessa pessoa!” Ricardo fez o teste e conquistou o personagem Daniel Cascaes em Como Uma Onda. Era a primeira vez na Globo que o protagonista não era brasileiro. “Desde essa época, me apaixonei pelo Brasil, pelo Rio, me senti muito em casa. Fui ficando, emendando trabalho atrás do outro, saindo daqui para fazer trabalhos em outros lugares do mundo. E já se vão quase 14 anos.”
De fato, ano a ano, o ator nunca saiu do ar na TV brasileira. E, agora, ele pode ser visto na elogiada novela das 6, Novo Mundo, de Thereza Falcão e Alessandro Marson, na Globo – que tem como cenário os tempos do Império no Brasil e chega ao fim dia 25 -, como o botânico português Ferdinando. Para viver o personagem, o ator foi a fundo na história dos exploradores/desbravadores reais que vieram estudar a natureza brasileira. Um homem que sofre com a morte da mulher, Letícia (Maria João Bastos), e se isola na mata por anos até ser descoberto por índios. E, aos poucos, se abre novamente para o amor. “Fui encontrando várias figuras históricas (de exploradores) e juntei todas no Ferdinando: uma pessoa completamente deslumbrada por sua profissão, apaixonado por sua vida de pesquisa, e isso você encontra em todos os exploradores.”
Mas, para Ricardo, mesmo sendo um personagem interpretado em sua língua materna, o sotaque ainda é um desafio. “Faço o português de Portugal que não só não é o atual, por ser um português de época, como um português que também tenha que ser entendido pela maioria dos brasileiros. Então, tenho que cuidar da articulação das palavras, em não comer nenhuma sílaba, nenhuma letra, nenhuma vogal”, explica ele. “Sempre tem trabalho de prosódia, diariamente aqueço a voz para o sotaque ficar bacana. É um trabalho diário, a gente só termina quando acaba a novela.”
Nascido em Lisboa, o ator conta que esse trabalho com o idioma já era desenvolvido na novela Liberdade Liberdade, de Mario Teixeira, no ano passado. A direção era de Vinícius Coimbra, que também está no comando de Novo Mundo. “Em Liberdade, Liberdade, eu falava português de Portugal. A direção da novela é a mesma, isso facilitou um pouco, mas não deixa de ser uma troca constante em cada cena, de a gente trabalhar junto, de eu em casa trabalhar muitas horas em torno do texto, trocar algumas palavras com as que vão ter melhor compreensão”, afirma. “Os meus últimos trabalhos têm sido de uma caracterização física e de uma verdade muito intensa, mas acho que tem muito a ver por serem obras de época, de estarem retratando um período histórico, obviamente ficcionado, mas a gente tem que manter essa verdade nos personagens”, completa o ator, que também fez um belo trabalho no filme português Cartas da Guerra, ambientado na Guerra Colonial Portuguesa, nos anos 1970, e será o padre Adão, na série Filhos da Pátria, situada no Brasil de 1822, pós-independência, que estreia dia 19.
Em Liberdade, Liberdade, Ricardo fazia o rude militar Tolentino, que se apaixona por André (Caio Blat), e que renega esse amor, provocando um desfecho trágico aos dois personagens. Uma frequência de interpretação, aliás, muito diferente a que Ricardo confere ao afável Ferdinando em Novo Mundo – contrapontos que o ator diz procurar sempre em sua carreira. Tolentino e André protagonizaram um momento histórico na televisão brasileira: a cena de sexo entre homens. Ricardo se recorda com carinho desse trabalho. “Eu me sinto muito honrado de ter participado desse projeto, que retratou um período histórico muito importante tanto para história do Brasil quanto de Portugal, que teve um impacto maravilhoso no público. Era tudo feito com muita verdade. Amei o Tolentino, amei o desenho que o Mario Teixeira construiu para mim, amei ter tido a oportunidade de dividir a cena com um grande amigo como Caio Blat, de ter tido a oportunidade de mostrar uma cena tão bacana, tão bem dirigida por Vinícius Coimbra, tão bem pensada para que tudo ficasse perfeito, com uma delicadeza”, comenta Ricardo.
“Estavam ali dois homens, mas podiam estar duas mulheres, ou um homem e uma mulher. Era uma cena de amor. Obviamente, no momento, o mundo também está se abrindo para quebrar uma série de tabus, para aceitar a diferença, para respeitar a individualidade de cada um. Sem levantar bandeira, que isso nunca foi nosso propósito, mostramos algo que acontecia na época, que era considerado um crime, uma doença. Acho que foi uma novela marcante, com cenas como essa e tantas outras muito importantes. Era uma grande cena e, por isso mesmo, teve esse preparo grandioso, mas, na verdade, ela falava de amor.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.