Gilberto Gil diz ser muito envergonhado do que fez. Não gosta de ouvir seus próprios discos, “com algumas exceções”, e admite, bem-humorado, já ter esquecido boa parte de seu repertório por conta disso. Mas, aos 75 anos, ele se sente satisfeito em saber que músicas que escreveu há algum tempo se mantêm relevantes. “Eu mesmo não faço isso, mas acho interessante que os outros olhem com carinho para o meu passado. Acho bacana que essas coisas tenham significado para as pessoas, que isso viva no coração delas. É legal ver gente de várias gerações que aprecia o trabalho.”
Uma pessoa que aprecia sua obra e vem cuidando dela é seu filho Bem, que acaba de idealizar o show Refavela40 para celebrar as quatro décadas do álbum Refavela. Como fã, ele tem um apreço especial pelo que o pai produziu nos anos 1970. Em encontro recente, o pesquisador Marcelo Fróes, que vem resgatando o catálogo de Gil há duas décadas, mostrou a Bem gravações inéditas de shows dos anos 1970, e ele gostou do que ouviu. Esse material dá origem à caixa Gilberto Gil Ao Vivo (Anos 70), que entra em pré-venda nesta semana.
O pacote produzido por Fróes e supervisionado por Bem contém três CDs duplos, com shows feitos no Rio e em São Paulo entre 1972 e 1973. “Meu pai tem confiado a mim esse tipo de trabalho e ele sabe que eu tenho gosto por essas gravações. Os shows dessa época eram mais vivos, como se fossem um ritual”, afirma Bem. A caixa é um documento do que Gil fez imediatamente após retornar do exílio em Londres, onde aprofundou seu lado roqueiro ao mesmo tempo em que sentiu saudade de suas raízes nordestinas.
Antes de deixar o Brasil, Gil levou às últimas consequências seu flerte com o rock em Questão de Ordem. Nitidamente inspirada no trabalho de Jimi Hendrix, a música foi desclassificada pelo júri da eliminatória paulista do Festival Internacional da Canção de 1968. Foi a última faixa que ele gravou antes de ser preso em São Paulo, em dezembro daquele ano. “Se Gil não tivesse ido para o exílio, essa fase rock que a caixa registra com certeza teria acontecido antes, no Brasil. Ele queria ser um bandleader”, conceitua Fróes.
Na Inglaterra, Gil fez uma série de apresentações e participou de jam sessions ao lado de David Gilmour, do Pink Floyd, e Jim Capaldi, do Traffic. “Lá, eu tive um convívio próximo com muitas manifestações musicais. Ouvia rock, jazz e os trabalhos recentes do Miles Davis, que estava tocando com músicos ecléticos. Aquela era uma época dominada por grupos musicais.” Com essa consciência de grupo, Gil desembarcou no Aeroporto do Galeão em 14 de janeiro de 1972 pronto para estrear ao lado de uma afiada banda o show Gilberto Gil em Concerto, cuja gravação está no álbum Gilberto Gil Ao Vivo – Back In Bahia, 1972, o primeiro da caixa.
Como Gil fazia shows que duravam entre três e quatro horas, as faixas são inevitavelmente longas, assim como as dos outros álbuns do pacote, ouvido em primeira mão pelo Estado. O registro de Gilberto Gil em Concerto, feito em março de 1972 no Teatro Municipal do Rio, joga luz sobre músicas que ele havia feito recentemente. Tudo soa como uma obra em progresso.
Em Expresso 2222, as estrofes estão invertidas em relação ao registro no álbum de mesmo nome, que Gil começaria a gravar um mês depois. Aquele Abraço ganha abordagem diferente, tornando-se um blues repleto de improvisos de músicos virtuosos como o baterista Tutty Moreno. Tempo total da faixa: 18 minutos e 48 segundos. O Canto da Ema, do repertório de Jackson do Pandeiro, e Sai do Sereno, de Onildo Almeida, ganham regravações eletrificadas.
Um ano depois, Gil voltaria aos palcos do Rio para testar músicas inéditas gravadas para o álbum Umeboshi, que acabou arquivado e só foi lançado em 1999 por Fróes como Cidade Do Salvador. Gilberto Gil Ao Vivo – Umeboshi, 1973 é o título do segundo disco da caixa, com o registro dessa temporada no intimista Teatro Opinião.
Gil apresenta ao público algumas músicas que se tornariam clássicos, como Preciso Aprender a Só Ser. Antes de cantá-la, ele diz que vai mostrar um samba-canção feito duas semanas antes para Maria Bethânia e que iria cantá-lo “como se fosse Berré” (apelido de Bethânia). Ao terminar a interpretação, ouvem-se os aplausos efusivos de uma plateia entusiasmada com a letra filosófica e reveladora que acabara de ouvir. Para Bem, é o mais interessante show da caixa. “A banda toda está amalgamada com as ideias e a entrega dele.”
A viagem sonora se encerra com Gilberto Gil Ao Vivo – USP, 1973, registro de um show feito na universidade em maio de 1973. A gravação, já disponível há tempos em programas de compartilhamento de arquivos e no YouTube, é lançada de forma oficial pela primeira vez. Gil fazia temporada em São Paulo quando foi convidado por estudantes para se apresentar na universidade após a morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, torturado e morto pela repressão.
“A gente tinha uma cumplicidade grande, passei quase três horas lá conversando com eles. Lembro que o centro acadêmico estava fazendo uma eleição com diversas chapas, cada uma associada a uma tendência musical e a novos modos de comportamento”, lembra Gil, que foi à USP apenas com seu violão. Lá, ele cantou a pedido da plateia uma recente e já proibida parceria com Chico Buarque: Cálice. “Eu canto um pedacinho que eu me lembro”, diz ele. Ouve-se a voz de um estudante ao fundo: “Você quer a letra, Gil?”. Naquele ambiente de estudantes, ele conseguiu cantá-la sem censura duas vezes.
Gil afirma que hoje se sente distante das gravações que a caixa recupera. O espírito de improviso foi dando espaço a outras formas de criação. “Por causa do rádio e da diversidade do público, o espaço de audição ficou reduzido. Shows e canções foram diminuindo de tamanho. Nos habituamos a um enquadramento mais pragmático da canção.” Ele, contudo, diz ter boas lembranças dessa fase da carreira. E, pela qualidade do que se ouve, ele não tem motivo para se envergonhar.
Novo álbum com inéditas sai em 2018
Com 13 músicas inéditas, o novo álbum de Gilberto Gil está pronto e deve sair no início de 2018. Há músicas dedicadas ao neto Sereno, à bisneta Sol de Maria, e aos médicos que o acompanharam durante tratamento para insuficiência renal. “Este é um disco de gratidão pelo cuidado das pessoas comigo”, afirma Gil, que não lança disco de inéditas desde Fé na Festa (2010).
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.