Havia gente protestando na porta do Cine Oden e dentro da sala, durante a inauguração do 19º Festival do Rio. “A gente não consegue escapar de uma manifestação”, dizia, risonha, a diretora de Marketing Ilda Santiago. As manifestações não eram contra o festival. Na rua, os manifestantes carregavam bandeiras e cartazes. Dentro do Odeon, gente famosa levantou o cartaz com os dizeres – “Censura, nunca mais”. No palco, até autoridades gritaram a palavra de ordem – o diretor do BNDES, um dos patrocinadores master (com a Petrobrás) do Festival do Rio.
Neste momento de crise, a outra diretora, Walkiria Barbosa, disse que a palavra que define a edição de 2017 do Festival do Rio é solidariedade. “Não estaríamos fazendo esse grande evento sem o apoio de amigos, sejam pessoas físicas ou instituições.” E Ilda Santiago, sobre o filme que fez a gala de abertura – “É sempre uma responsabilidade escolher o filme da primeira noite. Nossa ideia é sempre escolher uma obra que, a par da excelência, seja representativa de coisas que, como cidadãos, estamos pensando e querendo dizer. Então, o que nós, toda a equipe do festival queremos dizer com A Forma da Água, de Guillermo Del Toro, é que estamos precisando de um mundo mais aberto, tolerante, menos preconceituoso com o que é diferente.”
Ilda destacou o esforço da equipe da Fox do Brasil para trazer o filme – “Essa será a terceira exibição oficial de A Forma da Água. A primeira foi em Veneza, onde o filme ganhou o Leão de Ouro, a outra em Toronto.” Na sequência, após a sessão para convidados, houve outra, aberta ao público, à meia-noite, e a renda reverteu integralmente para as vítimas do terremoto do México, segundo uma orientação do diretor mexicano, que está realizando essas sessões em seu país. No final, havia gente desconcertada. “Já tivemos A Bela e a Fera neste ano.” A referência era à versão live action da conhecida história pela Disney, com Emma Watson. Não exatamente.
Sally Hawkins não é nenhuma beldade – nem Emma Watson, para dizer a verdade – e a personagem também não é nenhuma princesa. É muda e trabalha na limpeza de um laboratório. Tem apenas dois amigos – um gay maduro, para não dizer idoso, que vive na nostalgia de velhos musicais, e uma colega de trabalho negra. Entre os diferenciais da Disney, estão dois tópicos. Não seria um filme de Guillermo Del Toro sem a dimensão política. Basta lembrar de A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno, ambos com personagens que remetiam à repressão dos seguidores do generalíssimo Franco na Guerra Civil espanhola. Aqui, a ação passa-se na América, no começo dos anos 1960. O laboratório abriga um ser anfíbio – da Amazônia.
A época é a da Guerra Fria com os soviéticos, que estão ganhando a corrida espacial. Há um militar que comanda a segurança no laboratório – Michael Shannon – e ele, e seus superiores no Exército, estão interessados em testar as habilidades da criatura para tirar proveito num hipotético lançamento à Lua. No laboratório, há um agente comunista infiltrado. Uma Bela e a Fera política? Não apenas. Porque Del Toro embala sua história num clima de erotismo que tem mais a ver com Andrzej Zulawski do que com o velho Walt.
Coincidência ou não, está em curso em São Paulo uma retrospectiva do autor nascido na Ucrânia. Entre os filmes, O Importante É Amar, com Romy Schneider, e Possessão, que valeu a Isabelle Adjani seu primeiro prêmio de melhor atriz em Cannes. Isabelle não só deseja como faz sexo com um ser rastejante, repulsivo. O ser anfíbio possui, em comparação, a elegância de um dançarino – para permanecer nas influências musicais. Sally masturba-se na piscina. O anfíbio vive num tanque. Ela o deseja. Ele, aparentemente, não tem nenhum apêndice sexual, mas fazem sexo, o que motiva um divertido comentário de Octavia Spencer. A Forma da Água não venceu Veneza à toa. Até nisso, no sexo, o filme tem a ver com os protestos na abertura do festival.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.