Vinha da Ida, da Natura Musical, é um projeto pessoal, centrado na criadora, a própria artista. É cada vez mais uma rara condição de músico que compõe todas as faixas e participa da estratégia de lançamento e de detalhes como a apresentação visual. Talvez por ter saído do circo, onde se faz de tudo para sobreviver, a compositora e sanfoneira Lívia Mattos saia ganhando.
Seu álbum coloca o instrumento, tão arraigado aos xotes e xaxados que o fizeram existir no País pós Luiz Gonzaga, em uma esfera mais abrangente. A não repetição de fórmulas, faixa a faixa, revela uma inquietação, uma busca pela afirmação de uma linguagem que ela descobre, um lugar e uma forma sutil para se colocar a voz. O fato de assinar todas as músicas sem nenhuma regravação de refresco aponta de novo para uma vontade de afirmação.
A abertura é um susto, e já é bom falar dos músicos e da produção de Alê Siqueira. Vinha da Ida, a canção, é cheia, mas pontuada por um belo trabalho de arranjo que agrupa tuba e bombardino de Jamberê Cerqueira, percussões (de Fábio Cunha, Gabi Guedes e Marcelo Pinho), guitarra baiana e cavacolim (de Gabriel Rosário), além de bateria, violoncelo e acordeon. São os bálcans do Nordeste, um espírito de Emir Kusturica com mais pé no chão. Mas tudo pop e, apesar de quebras no tempo, feito para se dançar.
A sequência de Vou Lá, com a participação do multi-instrumentista franco-português Loic Cordeone, deixa entrar outras cores de uma latinidade que dialoga bem com os mixolídios nordestinos. Mais uma vez, é o tempo de Lívia e sua voz sem empostações, quase pequena.
Olhos de Teresa é a canção onde o acordeon volta para casa. É bela, delicada, e ganha verdade como tudo o que a voz do parceiro e amigo Zé Manoel toca. E ele vai aparecer de novo em Sabia Pouco do Sal. O mesmo faz Deixa Passar, com a formação mais enxuta do disco, apenas de Reze e Massumi amparando a sanfona e a voz que canta algo assim. “Deixa passar, o que ficou de passado / Deixa ficar o que ficou de sagrado.”
Mais Eu tem outras informações. Seu acordeon faz agora riffs pontuando o suingue do que pode ser uma música saída tanto do Norte, de algum canto entre Belém e Macapá, ou direto do Caribe, tudo pelo arranjo de Jurandir Santana.
Sabia Pouco do Sal quebra tudo de novo e leva o clima para a solidão sertaneja imposta sobretudo pelo sotaque de Zé Manoel, que faz piano também. Zé é um criador de canções dos mais talentosos a surgir nos últimos anos. Seu show recente no Mimo Festival, dentro de uma igreja de Olinda, foi dos mais comoventes da temporada. A composição poderia até ser sua, mas Livia mostra que sabe ser sutil.
O Que eu Quero Levar, criação que Lívia divide com Loic Cordeone, é outra que vem dos ares do Pará.
A circense Melodia-a-Dia é um primor de arranjo, com muitos músicos, programações eletrônicas, efeitos espaciais e nenhuma poluição, e Sob o Céu Sobre o Chão (com Alguém me Avisou, de Dona Ivone Lara, colocada de forma incidental) tem belos versos, como os que abrem: “O céu / Teto da boca de um planeta / em rotação / Brilha quando chão tem menos luz / menos tensão / ou pra nós dois no São João”. Amarear, no fim, com a voz de Chico Cesar em certo momento, é sua inclinação mais pop. Lívia sabe por onde ir, tem confiança na proposta que cria e sua voz, usada nas extremidades de suas limitações, tem uma graça que se coloca sobre os momentos de fragilidade. É um nome pronto para o voo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.