A voz devia sair firme, por mais que doesse aquela verdade toda que Chico Buarque havia evocado para compor As Caravanas. “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.” As frases ganhavam força na repetição, como mantras, e um significado novo na história dos músicos que ensaiavam na sala principal do estúdio Espaço 91, na Pompeia, em São Paulo.
A iraniana Mah Mooni cantava em persa. “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria.” Ela saiu de seu país para poder se apresentar em público sem correr o risco de passar a vida em uma masmorra de Teerã por isso. Mariama Camara, percussionista, cantora e bailarina, deixou a Guinea-Conacri para fugir da fome. Sua parte era em soussou: “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.” Hidrás Tuala e Leo Matumana, cantores do Congo, deixaram um dos países de maior número de conflitos étnicos da África para tentar a vida no Brasil cantando em lingala e em francês. “A raiva é mãe da covardia.” Ao lado deles, o jovem Yousef Said, palestino refugiado da tormenta sem fim com Israel, tocava as três cordas duplas de seu bouzouki árabe sem precisar dizer nada para também contar algo de sua vida.
Alguma experiência além de musical acontece quando se está diante da Orquestra Mundana Refugi. Assim que reportagem chegou para conhecê-la, na última terça, 12, os músicos ensaiavam uma versão de As Caravanas com uma citação de Deus lhe Pague que seria entregue ao autor, Chico Buarque. A partitura, enviada pelo próprio Chico, ganhou arranjos de Carlinhos Antunes, mentor do projeto, e do acordeonista Daniel Muller. O resultado foi algo de provocar calafrios já no estúdio. A versão vai ser apresentada durante um show no Sesc Itaquera, às 16h do dia 25 de fevereiro, e o repertório terá como base o primeiro álbum do grupo, lançado há um mês.
Os músicos foram sendo identificados na cidade desde o projeto inicial da Orquestra Mundana, há 15 anos, de onde sai agora a Refugi. Antunes olhava para São Paulo como uma cidade de todos os povos, mas sem interação entre eles. “E minha ideia sempre foi a de juntar esses povos.” Os exilados políticos de outros tempos foram sendo substituídos pelos refugiados e imigrantes, e o músico aumentou seu trânsito entre eles. A Refugi nasceu durante as oficinas para imigrantes e refugiados que Antunes e a assistente social Cleo Regina Miranda ministraram no Sesc Consolação entre maio e agosto. “Se você canta ou toca algum instrumento, junte-se a nós”, chamavam os anúncios direcionados às comunidades. Deu certo.
Com a experiência de ter vivido no Marrocos por duas vezes, Madri e País Basco, e de viajar por 43 países em busca de histórias e informações que revelassem a intersecção entre os povos, Carlinhos Antunes lidera um grupo com 19 integrantes de idiomas e dramas diferentes, imigrantes ou em situação de refúgio chegados de Síria, Palestina, Guinea-Conacri, Congo, Cuba, França e Brasil. Sobretudo frutos de tradições orais milenares se juntando a músicos brasileiros com vivência acadêmica, o que faz a largada já ser dada com um desafio. “Aprendo todos dias a como lidar com esse encontro da cultura da oralidade dos povos com o pensamento lógico e cartesiano da academia europeia. Só aprendemos com eles se tivermos respeito. Um músico do Irã por ter dificuldade em entender determinado tempo rítmico ou alguma escala, mas isso será secundário diante de toda a história que ele traz na bagagem. Vai você tentar se comunicar no país dele usando toda a bagagem teórica que aprende no Brasil e vai entender que não é fácil.”
Mah Mooni, a cantora iraniana que teve dificuldade para entender o tempo em que deveria entrar na música de Chico, tem uma voz que parece sair de algum lugar que a anatomia ocidental não conhece. Ela está no Brasil por um sonho impensável às cantoras da maior parte do mundo. As leis islâmicas de seu país não permitem que mulheres cantem, dancem ou se apresentem em público. Seu sonho era apenas cantar. “Jamais pude fazer isso em meu país”, ela diz. Mooni vive com seu marido Ali, também iraniano, em São Paulo, e já teve problemas em seu país pela postura de indignação. “Ela prefere não contar, mas chegou a ser presa por isso.” Mooni não pode voltar a Teerã. “Eu falei demais. Denunciei o tratamento que é dispensando às crianças do meu país, por exemplo. Voltar posso, mas não poderia mais sair de lá.”
Mariama Camara é uma bailarina, cantora e percussionista da Guinea-Conacri. Ajudada por um amigo francês, chegou ao Brasil como uma refugiada social. “Meu amigo dizia que eu deveria vir ao Brasil, que a Bahia era como a África.” E o que era mais difícil em seu país, que não passa hoje por guerras civis ou étnicas? “O mais difícil? Tudo é um desastre, mas o principal é a fome.” O percussionista Abou Cissé vem do mesmo país, e sofre por não falar nada de português. Seu instrumento é poderoso na reverberação, o djembe, e sua função no grupo é fundamental.
A cantora Oula Al Saghir vem da Síria e é outra das personalidades importantes na criação da sonoridade que Carlinhos imprime ao grupo. O drama de seu canto reflete uma história de tragédias. Seu pai e seu tio se tornaram, há três anos, outras duas vítimas da guerra que começou com uma série de conflitos populares em 2011. Hidrás Tuala e Leo Matumona, fugidos das perseguições sanguinárias do Congo, colocam vozes com um brilho e um volume que fazem a música da Refugi parecer ciganear por toda a África subsaariana. Além de Antunes, o grupo tem, entre outros brasileiros, o pianista Danilo Penteado, o percussionista Beto Angerosa, o baterista Pedro Ito e o citarista descendente de chineses Nelson Lin.
Carlinhos Antunes fala do que considera um dos maiores ensinamentos diante de sua orquestra do mundo. “Temos que estar dispostos a sermos ignorantes com a cultura alheia. É só assim que vamos conseguir nos comunicar com ela.” Ele cita experiências suas ao dizer de certa mania de autossuficiência que o músico estudado tem diante da música dos povos de tradição oral. “Fui tocar com um grupo de ciganos da Romênia e não consegui acertar uma nota. O pensamento rítmico era o mais difícil. Eles usam compassos muito quebrados.” Enquanto alguns músicos só fazem música, outros contam histórias.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.