Quem atravessou a ditadura brasileira jamais esquecerá a figura de dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016). Arcebispo de São Paulo, foi um dos principais líderes a empreender resistência firme e contínua às violações dos direitos humanos típicas das ditaduras. Daí não estranha o título do documentário de Ricardo Carvalho em sua homenagem: Coragem! As Muitas Vidas do Cardeal Paulo Evaristo Arns.
Coragem não lhe faltava ao conduzir seu arcebispado ao longo da fase mais sangrenta da ditadura. E coragem era o que pedia aos que iam ao seu encontro. Pais ou mães que tiveram filhos desaparecidos, religiosos perseguidos pelo regime, jornalistas ameaçados. Coragem!, repetia, com a força moral dos que sabem que tudo nesta vida é passageiro, mesmo quando parece destinado a se eternizar.
Sobrou bravura a dom Paulo e também a outros personagens, como o rabino Henry Sobel e a Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas, quando tiveram de reagir à morte de Vladimir Herzog nos porões da ditadura. Herzog foi interrogado, torturado e apareceu morto nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo. Suicídio, segundo o laudo oficial. Assassinato, sabiam todos. Foi organizada uma missa ecumênica na Catedral da Sé, reunindo milhares de pessoas, assustadas porém corajosas, numa demonstração pública de repúdio ao regime. Há quem sustente que a ditadura começou a cair naquela tarde cinzenta no centro de São Paulo.
Foi, talvez, o grande momento público de dom Paulo e, por isso mesmo, ocupa posição especial no documentário. O filme, no entanto, ocupa-se da vida de dom Paulo em muitos outros aspectos. Vai à cidade de Forquilhinha, em Santa Catarina, onde ele nasceu em 1921, em uma família de 13 irmãos, de origem alemã. Franciscano, fez seus estudos em Paris e foi arcebispo de São Paulo de 1970 a 1998. Além de sua presença em causas políticas e dedicada aos Direitos Humanos, destacou-se por sua dedicação às populações carentes da metrópole. Moradores de rua e da periferia encontraram em dom Paulo um ponto de apoio em seus enfrentamentos com o poder público da cidade, de modo geral pouco preocupado com o destino dessas populações pobres.
Aliás, ficamos sabendo que dom Paulo vendeu um palácio episcopal e destinou a quantia de US$ 5 milhões à construção de paróquias pela periferia paulistana. Isso, depois de consultar as próprias comunidades carentes e escutar o que desejavam fazer com o dinheiro.
O filme vale-se de depoimentos muito bons, além da fala sempre carismática de dom Paulo. Clarice Herzog, o teólogo Leonardo Boff e o professor da PUC, Fernando Altemeyer, dão importantes depoimentos. A narração em off é do ator Paulo Betti. O formato é convencional, um tipo de documentário que quase não mais é feito no Brasil ou em qualquer parte.
E por que não deixamos de nos interessar pelo filme, a despeito da caretice da sua concepção estética? Porque o personagem se sobrepõe a essas limitações e as compensa. As vidas e a coragem de dom Paulo se impõem por elas mesmas. Nem tudo é forma.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.