Os estereótipos, sempre com um grau de preconceito, indicariam tudo ao contrário. O pianista deveria ser o de bagagem erudita e, dos dois, aquele que vem da metrópole. O sanfoneiro, o nordestino, com cheiro da terra e acento popular. E então se encontram o pianista Salomão Soares e o acordeonista Toninho Ferragutti e tudo vem abaixo. Salomão, pianista do interior da Paraíba, 27 anos, é um furacão em formação, daqueles que não sossegam se não arrebatarem um a um. Toninho, 59 anos, é o acordeonista paulista de Socorro, um dos mais requisitados criadores da linguagem da música instrumental brasileira nos anos 80.
O disco que lançam juntos, com seus nomes na capa, é a estreia de Salomão, que passou pela segunda edição do projeto Gig Nova, em 2017. E não foi o novato quem buscou o veterano, mas o contrário. Toninho, um dos músicos mais presentes em discos instrumentais e de cantoras brasileiras, sentiu um fluxo de ideias passando por Salomão com muita naturalidade desde a primeira vez em que tocaram juntos. “Tem que ser fácil. Fácil no sentido de que deve fluir, e isso está tudo subentendido. O gosto, a formação cultural, não devemos precisar negociar muito. E foi assim logo que tocamos na primeira vez.”
Apesar de assinado pelos dois, o álbum tem o conceito mais visível de Toninho Ferragutti, sua linguagem fala mais alto do que a de Salomão. Isso não é algo imposto, mas natural. Quando foi compor temas sabendo que eram para ser gravados com um de seus ídolos, o pianista teve a humildade de servir-lhe e a sabedoria de tentar agradar a ele. Quando esteve no palco do Gig Nova, Salomão se mostrou um pianista incendiário, de uma fúria rítmica combinada com momentos de suavidade melódica. Um dos grandes músicos de sua geração. No álbum, dividindo temas e solos com Toninho, Salomão se mostra um pouco mais contido, mas não menos entregue.
A beleza de Toninho não está nos arroubos rítmicos, mas nas melodias que consegue criar. Alegria de Matuto, que abre o disco, poderia ser uma explosão de sensações em mãos mais eufóricas. Ele vai por outro caminho, criando imagens mais urbanas por matrizes menos regionalistas. Seu instrumento prefere a poesia e Salomão entendeu logo onde estava pisando ao fazer três temas para levar ao estúdio. Quase Noite, Quebra Panela e Quando as Crianças Brincam, peças imagéticas, de ritmo mais diluído e apuro melódico.
A aposta de Ferragutti, de chamar Salomão pela energia fácil que saía dali, funcionou. O álbum foi feito sem ensaios, erguido direto no estúdio. “Levamos os temas escritos com harmonia, melodia e só”, conta Salomão. “Criamos o resto na hora, foi muito intuitivo. Não gosto de fechar os arranjos antes, é importante que se deixe algo para acontecer na hora”, completa Toninho.
Apesar de dar profundidade para sua jovem carreira, esse ainda não pode ser considerado o primeiro disco de Salomão Soares. O que deve mostrá-lo em seu próprio território está por vir. Será gravado em quarteto, com o jovem promissor trompetista Diego Garbin, o baixista Felipe Brisola e o baterista Rodrigo Digão Brás. Ele promete para este ano também um álbum solo, só de piano.
Salomão é de Cruz do Espírito Santo, cidade de pouco mais de 16 mil habitantes na região metropolitana de João Pessoa. Não havia músicos na família, mas uma mãe atenta que começou a escrever o certo por linhas tortas. “Vou a João Pessoa, meu filho, pensei em trazer um instrumento…”, disse ao menino de 11 anos. “Ah, mãe, que bom. Só não gosto de teclado.” E o que ela trouxe? “Acho que entendeu errado e acabou trazendo justamente o teclado. Eu fingi que gostei e comecei a tocar por ela.” Mãe nunca erra.