A ironia é um recurso importantíssimo para a arte em geral. Ao produzi-la, o artista permite a oxigenação de ideias, a formulação do senso crítico e a construção de uma posição consciente diante de uma situação. Quando constatada a tristeza da ironia e a força espúria que a move, intransponível, só resta a resignação. É isso que podemos sentir ao tratar da Casa Saraceni, bem tombado pelo município, e que agora, nas vésperas da comemoração dos 450 anos da cidade, é destombada por ação, entre outros, do Conselho de Patrimônio Histórico de Guarulhos. Vítima da omissão, da má informação e do casuísmo político da cidade.
A Casa Saraceni foi tombada pela Lei Orgânica do Município e ratificada pelo Decreto-Lei 21143, de 2000, reforçando o seu caráter de interesse histórico e valor cultural. O procedimento comum era de que a Casa, assim como outros bens tombados seriam inventariados, seja pelo CPHAACG, ou pela própria Prefeitura, responsáveis por executar políticas de defesa do Patrimônio Historico. Aqui entra a primeira omissão: nos vinte anos em que a Casa Saraceni ficou tombada, nada foi feito pela Prefeitura de Guarulhos, muito menos pela sociedade civil no sentido de se inventariar arquitetonicamente, historicamente e culturalmente a edificação e o que ela simbolizou. A agressão ao seu entorno, bem como intervenções na própria estrutura, realizadas pelos donos do Shopping Internacional de Guarulhos, foram singelamente ignoradas pelo poder público que deixou uma situação sem volta: um patrimônio, totalmente desprovido de relação com o seu entorno, rodeado por um estacionamento até o seu sopé.
A natureza sorrateira do ocaso da Casa Saraceni é que pertencendo a um ente particular, conforme a lei que aprovou o Conselho de Patrimônio Histórico, a responsabilidade pela manutenção, restauração e conservação também é do proprietário. A má-informação, somada a pouca visibilidade da questão, resolveu fazer a sua parte. Em junho de 2010, o gabinete do vereador Geraldo Celestino passou uma alteração na lei orgânica pedindo o destombamento. Tal medida não foi objeto de discussão, aprofundamento de debate ou esclarecimentos. Nada. No tortuoso caminho legislativo, a Câmara Municipal aprovou o destombamento, sem ouvir Conselho de Patrimônio, sem ouvir a Prefeitura, executivamente, o responsável pelo destombamento. O consenso foi construído na ignorância completa.
Responsavelmente, a Prefeitura, no papel da Secretaria de Cultura, tentou dar o respaldo jurídico para que tal acinte não fosse perpetrado contra a história da cidade. Consta que nenhum dos bens edificados da cidade estivesse em algum livro de tombo. A determinação do que seria tombado fora realizado na urgência eminente de se perder para sempre tais edificações ou sítios. No caso da Casa Saraceni, o valor arquitetônico em estilo Art Nouveau, a princípio, determinaria seu valor como bem tombado. Obviamente, tal consideração seria fruto de aprofundamentos, estudos mais embasados, o que produziria contestações e outras revelações.
O casuísmo político adentra aqui: a Prefeitura de Guarulhos, embasada em parecer técnico realizado na calada da noite e cujos juízos de valores, pré-conceitos e termos inadequados (frutos de desconhecimentos da história da cidade) fazem qualquer estudioso se contorcer na cadeira, resolveu abrir mão de qualquer solução negociada com os atuais proprietários da Casa Saraceni. Pior, o Conselho de Patrimônio, em que se faz representar a sociedade e a quem caberia uma opinião fundamentada a partir da emissão de um parecer técnico que levasse em consideração outras matizes para a preservação da Casa Saraceni, aprova a peça fantasiosa, sem o zelo institucional de seus representantes – em que se pese a justiça, entre os contrários se destacaram a Unifesp e a Organização Chico Mendes.
É isto. Conseguiu se forjar um consenso em torno de uma questão que não será fruto de debates, manifestação ou queixas aos vereadores ou ao poder público. Resta aos herdeiros do senhor José Saraceni, assistir bestificados a demolição do prédio, sem nada poderem fazer. Resta a nós, moradores dessa cidade que comemora 450 anos, ver, perplexos, a destruição de mais um patrimônio para dar lugar a vagas de estacionamento. Novamente o tal “progresso” atropela a História e ignora os rastros da memória. A especulação imobiliária venceu. Não foi este o primeiro, será o último? Tudo isso nos leva pensar: Guarulhos tem história?
Tiago Guerra é historiador, professor e membro do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico, representando a sociedade civil