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A BOMBA E O TRAQUE

Artigo de Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político e de comunicação.

Que se anote na agenda das mutações tupiniquins. A bomba da primavera de 2013 pode ser o traque do verão de 2014. A hipótese é bastante sustentável na esfera da política. Quem diria que a sonhática Maria Osmarina Silva de Lima, Marina, 55, ex-seringueira e ex-senadora do Acre, se uniria em aliança política com o pragmático e garboso governador de Pernambuco, Eduardo Henrique Accioly Campos, 48, comandante do PSB, para lutarem juntos pela cadeira presidencial no pleito do próximo ano? O sonho de Marina é depurar as práticas da velha política, banhando-as nas águas da ética, ou, em seus termos, “assumir responsabilidades com a sustentabilidade política, social, ambiental e cultural”. O pragmatismo de Campos tem como ideia “aposentar um bocado de raposas que estão enchendo a paciência do povo brasileiro para o Brasil seguir em frente”. A propósito, o governador, tempos atrás, já confessara a este escriba a meta de reunir no mesmo espaço “o grupo pós 64” (citando Aécio, Kassab, Ciro e Cid Gomes, entre outros), assumir o comando da Nação e dar adeus aos guerreiros da velha guarda.

A fome moral da líder da Rede Sustentabilidade e a vontade do neto de Arraes de presidir a mesa dos comensais do poder produziram o artefato de maior repercussão neste ciclo pré-eleitoral. Como é costume no balcão de nossos produtos políticos, as dobraduras da engrenagem deixam de ser examinadas de maneira a mostrar se estão ajustadas ou mesmo se faltam parafusos para dar lugar ao “feito extraordinário”, que, à primeira leitura, induz à convicção de que a parceria entre ambos abre um rombo nos costados da candidatura governista. Nem se atenta para o fato de que o elo entre Marina e Campos, à luz da racionalidade, não é tão resistente como aparenta. Basta lembrar a posição da bancada do PSB, que se alinhou em peso aos ruralistas na votação sobre o Código Florestal. Nem o látex da seringueira, que Marina extraía em sua adolescência, é capaz de emprestar firmeza a essa liga. Que só se justifica em função das composições franksteinianas que a política nesses trópicos é capaz de produzir.

Façamos uma leitura dos fatores – alguns de fundo sócio-cultural – que embasam as práticas eleitorais. A começar pela cultura de votação. O candidato prevalece sobre os partidos. Há casos em que as organizações predominam e avançam sobre os perfis pessoais. Isso ocorre nos espaços em que a polarização entre elas é muito aguda. PT e PSDB, por exemplo, em algumas regiões formam batalhões em seus campos de guerra. Ou, ainda, é o caso de siglas de caráter religioso (principalmente as patrocinadas por credos e Igrejas) e aquelas que ocupam as extremidades do arco ideológico, cujo discurso radical é seletivo, afastando as massas eleitorais (PCO, PSTU etc). Sob a ordem de um sistema cognitivo que tende a privilegiar perfis pessoais, transferir votos constitui operação de difícil viabilização. Assim, a hipótese de Marina transferir seu patrimônio eleitoral para Eduardo Campos é frágil. Nem mesmo se fossem irmãos siameses, a transferência seria realizada. O individualismo é o vértice da política brasileira. Ideários formam apenas pequenas ilhas no arquipélago.

As figuras diferentes de Marina e Campos não contêm uma raiz ideológica comum? É possível. A convivência por bons tempos no mesmo canto do arco ideológico condiciona amigos de ontem e parceiros de hoje a usarem a mesma linguagem e, por conseguinte, a comporem um discurso sintonizado. O parentesco doutrinário favorece a formação de um ideário comum e, nessa condição, os noivos se motivam a realizar uma união estável com direito a lua de algumas semanas. Mesmo assim, a transferência de voto não se dá em grandes quantidades. Pode-se calcular margem de 10% a 15% de transferência. Ademais, por mais esforço que façam os nubentes, a união estará sujeita a trovoadas. Já se ouvem os trovões. Marina pediu para Ronaldo Caiado, líder do DEM, conhecido guerreiro ruralista, buscar a porta de saída do PSB. O deputado aceitou. Alfredo Sirkis, fundador da Rede Sustentabilidade e um dos principais aliados de Marina, defende “realinhamento” de forças com políticos de outros conjuntos. Marina é contra. Imagine-se, agora, um cabo de guerra puxado pela sonhática e pelo pragmático

Se a passagem de votos de Marina para Eduardo não encherá o bornal deste, quem acabará levando a melhor com a “jogada de mestre”? A própria Marina, em caso de inversão, ela encabeçando a chapa. Ou Dilma. A proximidade entre eles foi firmada no ciclo petista. O governador e a ex-senadora saíram dos espaços que o PT abriu, à esquerda. A Rede e o PSB tentam desfraldar, mesmo de maneira acanhada, a bandeira do socialismo. Portanto, o parentesco com a presidente é patente. Outras pedras do tabuleiro deverão ser jogadas no momento em que os discursos começarem a jorrar das trombetas eleitorais. Os eixos centrais já foram apresentados. Campos tem intensificado a pregação com os verbetes “melhorar, fazer mais e melhor, qualificar serviços públicos”. Não é oposicionista como Aécio Neves, que defende um programa radical de “mudanças”. As pesquisas mostram a contrariedade da população com os serviços públicos (o que combina com o discurso de Eduardo Campos), mas não está insatisfeita com seu modo de vida. O bolso do consumidor continua bancando o suprimento cotidiano.

O estado social conduz a hipótese de que o conceito “melhorar” é mais palatável que o verbo “mudar”, aquele expressando aperfeiçoamento, melhoria dos serviços públicos, este despertando o receio de uma “virada de mesa”. A resposta das urnas, como se sabe, será dada pela economia. A manutenção de índices elevados de satisfação, o controle da inflação e a garantia de empregos seriam os requisitos para a candidata à reeleição capturar parcela dos votos de Marina Silva. Sob essas espessas nuvens, a tão comentada bomba da primavera ameaça perder combustão e virar um traque no próximo verão.

 

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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