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Flip: portuguesa nascida na África, Isabela Figueiredo revolve passado colonial

Isabela Figueiredo nasceu em Maputo, filha de portugueses, e está neste sábado, 28, em Paraty, uma cidade também colonial, como convidada da Flip. Ela divide o palco neste sábado, 28, com Juliano Garcia Pessanha. Autora de Caderno de Memórias Coloniais e do romance A Gorda, que ela considera a segunda parte do primeiro, já que se trata de uma ficção da menina que fala sobre seu pai europeu e racista vivendo em Moçambique, que é ela própria, Isabela falou ao jornal O Estado de S. Paulo sobre sua obra.

Você foi exposta a muita coisa muito cedo. Houve inocência na sua infância?

Foi exatamente a minha inocência que me fez ver a realidade sem o filtro dos adultos, com os olhos de uma menina que questiona por que os seres humanos não são iguais, por que aquele menino não vai à escola e está descalço. A minha intuição me dizia que aquilo não estava certo. Quando percebi que meu pensamento era proibido, eu me senti uma espécie de traidora. Sabia que não podia falar alto o que sentia. Não podia dizer ao meu pai que não concordava com a forma com que ele tratava os empregados. Comecei a achar que eu tinha um lado traidor em relação a ele e àquela realidade.

Como é ser tão pequena e viver com sentimentos contraditórios?

Não sabemos nada quando somos crianças. Estamos sempre a procurar equilíbrio e pilares. O que sinto é que, apesar dos meus dilemas, consegui me equilibrar e entendi o que tinha de dizer e o que tinha de calar. A relação com meus pais, no futuro, foi muito difícil. Eu e meu pai tivemos muito conflitos políticos e ideológicos. Nossa guerra só terminou com sua morte, embora em certo momento tenha havido um compromisso de humor. Ele me chamava de comunista e eu o chamava de fascista, e a gente conseguia rir disso – com ironia, mas sem briga.

Houve amor até o fim?

Sim.

E perdão?

O perdão está implícito no amor. Muitos portugueses que vieram da África acham que eu traí meu pai e todos os retornados. Não sou uma traidora e eles deviam me agradecer. A minha narrativa nunca mais vai sair da história do meu país.

Histórias assim precisam de uma distância no tempo para serem escritas?

Precisamos que os envolvidos morram porque não queremos magoar nossos familiares. Eu tive o azar-sorte de ser uma filha tardia. Tive pouco tempo para viver com eles, mas pude falar sobre isso mais cedo que outras pessoas. Eu não permiti à minha mãe a leitura de Caderno. Eu li para ela e fiz censura de algumas partes.

Vasculhar a memória, remexer os escombros, sensações. O que fica depois da obra pronta? Dói igual? A revolta é a mesma?

A revolta apaziguou. Quando escrevi o Caderno, meu pai tinha acabado de morrer e eu pensava obsessivamente nele. Falava com ele sozinha e achei que estava maluca. Comecei a fazer psicanálise freudiana, dura. Fui obrigada a mergulhar fundo dentro de mim. Muitas vezes, enquanto escrevia o livro, cheguei a fechar os olhos como se entrasse num poço de mim mesma para procurar sentir como criança, com os meus olhos de ontem. Quando o livro sai, eu faço o exorcismo dos meus fantasmas. Na revisão para a reedição de 2016, senti uma enorme vontade de branquear a figura do meu pai, o que significava que eu já não estava tão zangada com ele. Isso não aconteceu. Mas vou voltar a escrever outros cadernos. Tendo a voltar sempre a isso. É o meu vulcãozinho. O magma está sempre ali a saltar: África, África, África.

Você só voltou a Moçambique muito depois.

Passei o Natal e a virada de 2016 para 2017. Comprei a passagem depois de um sonho. Eu não podia continuar mais com essa pedra no meu caminho. Lá, sofri com saudade da minha família, chorei, fiquei perturbada. Eu estava na minha terra desterrada. Uma experiência muito radical.

Quem é você depois da viagem?

Eu descobri que sou portuguesa. Passei minha vida dizendo que eu era diferente, moçambicana, colorida. Passei a vida a falar mal dos portugueses. Cheguei lá e me senti um peixe fora dágua. Sinto que aquela não era a minha cultura. Fui à África descobrir que eu era europeia. Senti saudade do meu pai, da minha mãe, da minha infância e senti saudade do tempo colonial. Então, o que descobri? Que eu fui uma colonialista sem saber (risos).

CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS
Autora: Isabela Figueiredo
Editora: Todavia (184 págs.; R$ 49,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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