Pela terceira vez no Brasil – duas para participar da Mostra -, Sergei Loznitsa termina por dar razão ao compositor Tom Jobim, que dizia que o País não era para amadores. “Precisaria ficar mais do que quatro ou cinco dias para tentar entender o Brasil. Sei que vocês estão no meio de uma crise, e a polarização é forte, mas o que salva o Brasil é que, apesar da violência cotidiana, vocês não têm participado de guerras recentes. A carnificina pode ser brutal. A Rússia até hoje carrega as cicatrizes da 2ª Guerra.”
Loznitsa terá neste sábado, 6, dois encontros com o público no IMS, na Av. Paulista. Às 3, após a exibição de Donbass, participará de debate com Kleber Mendonça Filho, curador de cinema do instituto e da retrospectiva do autor russo. Às 19h, ministrará sua segunda master class. A primeira, na sexta, 5, foi sobre documentário na ficção, e vice-versa, justamente a partir do paradigma que representa Donbass – veja o filme, mas prepare-se para imagens chocantes. Neste sábado, o tema será o som no cinema, no documentário na ficção.
Loznitsa reside na Alemanha, em Berlim. “Não se pode viver num país (a Rússia) em que não existe Justiça e ela serve ao poder.” Fazer oposição a (Vladimir) Putin pode ser muito perigoso. Que o diga Kirill Serebrennikov. O cineasta de Leto/Verão, uma das atrações anunciadas da próxima Mostra, está confinado na Rússia. Loznitsa provavelmente teria o mesmo destino. Sua obra é crítica, incômoda. “Tenho esse gene de rebeldia. “No jardim de infância, liderei um movimento contra os professores, que não nos respeitavam, como crianças.”
Em ficções como Minha Felicidade e Na Neblina, ou em documentários como O Dia da Vitória e Donbass, Loznitsa mostra sempre uma Rússia violenta, em que os direitos são aviltados. Por que ocorre isso? “Também queria saber. Talvez tenha a ver com nossas origens. Desde os czares, a corte era iluminista, mas os camponeses viviam em regime pior que a servidão – escravatura. Mudam os patrões, a perversidade das relações sociais permanece.” Sua primeira ficção, Minha Felicidade, abre-se com um cadáver sendo jogado no cimento e prossegue com a história de um motorista numa estrada pavimentada pela violência. Na Neblina passa-se durante a ocupação nazista de Belarus. A neblina invade a imagem, vira metáfora de uma impossibilidade de ser e até estar. O mal que as pessoas se fazem.
Donbass radicaliza a violência que parece estar na origem da nação russa. A guerra com a Ucrânia. Loznitsa reencena imagens viscerais. Um jovem apanha até morrer. “Isso eu não encenei, não poderia. Encontrei a imagem no YouTube e escrevi um texto que me norteou durante a realização. Um diretor precisa ter parâmetros éticos.” Gentle Creature, Uma Mulher Doce. Baseado em Dostoievski, o filme mostra uma mulher oprimida pela injustiça e pela burocracia, que só piorou com o comunismo. Lembranças do stalinismo, da 2ª Guerra. Um palácio do século 19 transformado em prisão. Numa cena, um personagem propõe um brinde – “Ao nosso enorme sofrimento.” O brinde não vale apenas para Vasikina Makovtseva, a mulher doce. Vale para toda a obra de Loznitsa, que coloca na tela uma Rússia insustentável. Que país é esse? Antes, todo o horror era creditado pelo Ocidente ao comunismo. No pós-comunismo, nada melhorou, exceto que a sociedade que se pretendia sem classes cavou um abismo social intransponível, e no qual a vida humana não vale nada – o cadáver jogado no cimento serve como aterradora amostra.
O cineasta avalia que todos os seus filmes, as ficções como os documentários, abordam os temas da decadência e da desintegração. “São os tormentos que afligem o antigo Império Russo, que veio desmoronando desde a revolução de 1917. Nada define essa situação melhor que a guerra. Embora tenham se passado mais de 70 anos do fim da 2ª Guerra, ela ainda ecoa no imaginário russo.” Pegando carona em outra guerra – da Ucrânia -, Donbass atualiza o velho horror. “A novidade desse filme é que não tem personagens. Há tempos que queria experimentar uma narrativa com outra dramaturgia, meio Eisenstein, meio (Luis) Buñuel, inspirada no Fantasma da Liberdade.” Com todo horror que retrata, o cinema de Loznitsa não abre mão da beleza. “Claro, não é a realidade crua. Como artista, trabalho com estética. A beleza, apesar de tudo, é sempre um objetivo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.