Variedades

Livro resgata a infância no campo de refugiados de Kakuma, no Quênia

Deng nasceu no Sudão e vivia em paz com a família até a guerra chegar. “Quando fecho os olhos, ainda vejo meu vilarejo queimando, soldados violentos em cima de seus cavalos, pessoas correndo em desespero.”

O garoto se escondeu, fugiu, vagou por semanas sozinho e depois com outras crianças também perdidas. Sentiam fome e sede, e medo dos leões, das hienas, dos soldados, das bombas e de nunca mais ver seus pais. Quando chegou a Kakuma, estava com 8 anos e desamparado. Nunca mais viu seus pais.

Geedi é somali, mas nunca esteve na Somália – ou em qualquer lugar que não fosse Kakuma. Chegou no ventre da mãe, que caminhou por 20 dias com a filha após o marido ser morto em outra guerra. Gosta de subir em árvores e ficar lá sozinho com seus pensamentos. E de fazer brinquedos, correr e fotografar.

Deng e Geedi são amigos, vivem no campo de refugiados de Kakuma, no noroeste do Quênia. Compartilham o mesmo presente e a sensação de indefinição com relação ao futuro.

Eles não existem de verdade – são personagens de Dois Meninos de Kakuma, livro que a jornalista e fotógrafa franco-brasileira Marie Ange Bordas lança agora, pela Pulo do Gato, 15 anos depois de pisar pela primeira vez no campo criado em 1992 para receber, provisoriamente, refugiados sudaneses. Os meninos são uma ficção, porém, foram criados com base em mais de 20 anos de conversa e observação.

Na obra, Deng e Geedi contam brevemente sua trajetória enquanto vão apresentando esse campo provisório que tinha 90 mil habitantes quando Marie viveu lá por dois meses, em 2003, e que hoje acolhe 200 mil pessoas – 200 mil pessoas que não podem sair de lá, não podem recomeçar a vida no Quênia, e que só esperam, por anos a fio, a chance de voltar para casa ou de ser recebidos por outro país.

Os dois textos, em primeira pessoa, são acompanhados de fotografias da autora e de fotoilustrações, com desenhos dela e das crianças de Kakuma. Marie Ange conta que durante o processo de criação do livro se fez as mesmas perguntas que fazia aos meninos durante suas oficinas de vídeo lá. Como representar em imagens o que não vivemos mais e o que não é tangível? Como representar o sonho, a memória?

“No livro, o desenho ocupa os espaços das coisas que não eram fotografáveis. Ele traz o sonho, o lúdico e a fantasia”, conta a autora. No final, ela apresenta uma parte informativa sobre Kakuma, a questão dos deslocamentos e sobre ela.

Nascida em 1970, Marie Ange conta que está, desde a infância, atenta a esses movimentos. Em 2001, depois de alguns anos de estudo em Nova York, fez uma residência artística na África do Sul que marcou o início de seu projeto Deslocamentos – durante uma década, ele a levaria a Kakuma e a outros campos de refugiados. Nos últimos 10 anos, passou a trabalhar mais diretamente com crianças e jovens, em oficinas artísticas, por “acreditar na importância da educação crítica e da arte como processo transformador – no sentido individual e como ajuda na construção de um mundo mais justo e menos desigual”.

Com Dois Meninos de Kakuma, Marie Ange conta que quis mostrar aos jovens leitores que os fatos não estão isolados no mundo. “Fazemos parte de um mesmo sistema, um sistema de exclusão. Os refugiados continuam vivendo em tal situação porque os conflitos não terminam. E por que não terminam? Porque servem ao interesse de poucos. No Sudão, não se trata de guerra religiosa entre duas tribos. O Sudão continua sendo a segunda maior reserva de petróleo da África, que está sendo alimentada pelo mesmo sistema que a gente vive. O que me move é um pensar político, entender esse mundo.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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