“Um pintor tem o universo em sua mente e em suas mãos.” A frase é de Leonardo da Vinci, símbolo para muitos da Renascença e dono de um espírito humanista que revolucionou a arte e a ciência. Mas, agora, populistas de extrema-direita abrem uma disputa pela propriedade de suas obras e pelas homenagens dos 500 anos de sua morte, completados em 2019.
No fim de semana, o governo de extrema-direita da Itália anunciou que pretende cancelar os acordos existentes com a França para permitir que as pinturas de Leonardo da Vinci, hoje em acervos de museus italianos, sejam emprestadas ao Louvre, em 2019.
A decisão rompe um acordo fechado entre governos anteriores ainda em 2017 e que já previam uma troca de obras de arte para os eventos e exibições no ano que vem.
Em troca, o Louvre concordava em emprestar obras de Rafael aos italianos para os eventos que vão marcar os 500 anos da morte do pintor, em 2020.
Lucia Borgonzoni, subsecretária do Ministério da Cultura, contou que, ao descobrir os termos do acordo sobre Da Vinci, optou por suspender o processo. “Leonardo é italiano. Ele só morreu na França”, declarou a subsecretária.
O artista nasceu na região de Florença em 1452. Em 1516, ele deixou seu estúdio no Vaticano e passou a fazer parte da corte de Francisco I, rei da França. O monarca havia recém-conquistado Milão. Da Vinci passaria então a morar em Amboise, hospedado pelo rei francês. Mas morreria em 2 de maio de 1519, naquele mesmo local.
“Por qual motivo então os franceses não nos emprestam a Mona Lisa?”, atacou a representante do partido de extrema-direita, Lega, em declarações aos jornais italianos.
Ao longo dos anos, o Louvre rejeitou emprestar a Mona Lisa a museus italianos, onde ela é chamada de La Gioconda. Da Vinci se mudou para a França em 1516 e a pintura foi comprada pela família real francesa, depois de sua morte. Desde a Revolução Francesa, a obra é propriedade do governo francês.
Procurada pela reportagem, a direção do Louvre optou por não comentar, por enquanto, sobre a nova polêmica. Mas fontes em Paris próximas à organização dos eventos indicaram que o museu tomou todas as medidas para evitar que sua exibição acontecesse ao mesmo tempo que as festividades na Itália.
Ainda que a morte de Da Vinci seja lembrada na primavera europeia de 2019, os franceses optaram por realizar sua exposição apenas em outubro, evitando um conflito de agendas.
Além disso, o museu considera que tem legitimidade para sediar o evento, já que mantém 5 das cerca de 15 pinturas existentes do artista. Para completar, o Louvre foi o único museu fora da Itália a emprestar duas obras de Da Vinci para uma exposição em Milão, em 2015.
Esse não é o primeiro atrito entre o governo populista da Itália e a França. Matteo Salvini, líder do partido Lega e hoje ministro do Interior, tem feito provocações aos franceses com temas como imigração e fronteiras. Agora, a arte está na agenda.
Roma se queixou ainda de que o Louvre fez pedidos diretamente a locais como a Galleria Borghese em Roma, por algumas das obras. Veneza e Turim também estavam em negociações diretas. De acordo com o Ministério da Cultura, todos os contatos foram suspensos e quem definirá o empréstimo será o governo.
Ao jornal “O Estado de S. Paulo”, o governo italiano indicou que Roma está disposta a conversar. Mas sempre que o acordo representar uma troca recíproca de artes.
Frédéric Mitterrand, ex-ministro da Cultura da França, não poupou críticas à decisão italiana. Para a imprensa, em Paris, ele alertou que a suspensão não ocorria por conta de um projeto cultural liderado por Roma. “Mas por um tipo de crise de cólera nacionalista”, disse. Segundo ele, é uma tradição na Europa a autonomia dos museus e seu afastamento de considerações políticas. “Mesmo no período mais glacial da guerra fria, havia uma política de empréstimos de obras entre museus soviéticos e franceses. Agora, é um sequestro”, atacou.
Mitterrand chegou a contestar a questão da nacionalidade como um elemento definidor do local das homenagens. “Leonard de Vinci é italiano. Mas ele se refugiou na França”, justificou ainda.
Para o francês, se a questão da nacionalidade começar a determinar os empréstimos entre museus, os impasses vão se proliferar. “Rossini também era italiano e viveu na França. Se começarmos a fazer uma lista de todos aqueles que saíram de um país para o outro, não haverá mais fim”, alertou.
Fontes em diferentes museus europeus confirmaram ao Estado a surpresa diante do anúncio dos italianos, principalmente depois das reformas amplas que o governo anterior em Roma promoveu no setor cultural da Itália.
Na gestão de Dario Franceschini, o Ministério da Cultura permitiu que instituições italianas fossem lideradas por estrangeiros. Em Nápoles, o museu Capodimonte passou a ser comandado pelo francês Sylvain Bellenger, que conseguiu transformar o local em um dos centros de atenção do cenário artístico italiano.
A Pinacoteca di Brera, em Milão, e a Uffizi Gallery, em Florença, também passaram para mãos estrangeiras. Nos departamentos técnicos, especialistas britânicos e alemães foram contratados. O temor, porém, é que as leis sejam revistas para que essas instituições voltem a ter, na direção, apenas italianos.
Outra preocupação é com os planos do partido Lega de converter a Casa del Fascio, uma das sedes do partido fascista e símbolo do regime de Mussolini, nas proximidades de Como, em um museu de referência.
Manifesto
Durante a campanha eleitoral na Itália, no começo do ano, o partido de Salvini publicou um manifesto em que destinava três páginas para o que chamou de “herança cultura e identidade italiana”.
Nele, o grupo insistia em usar a cultura como “um ativo estratégico” da Itália. “É uma indústria que pode garantir primazia comparada ao resto do mundo.” O plano ainda previa centralizar as operações de marketing de centros culturais e museus que, entre 2015 e 2016, tinham ganho autonomia e passaram a administrar seus próprios recursos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.