A relação central de Fique Comigo – o primeiro romance de Ayobami Adebayo, jovem escritora nigeriana aluna de Margaret Atwood e premiada no Reino Unido – é um paralelo entre casamento e política.
Situado na Nigéria dos anos 1980, época de golpes militares, eleições fraudulentas e disputas sociais, o livro inter-relaciona a situação instável da política com a trama potente de um casamento prestes a se despedaçar.
O romance é narrado na maior parte por Yejide, que após seu período na universidade decide abrir um salão de beleza – traço que aparece de maneira recorrente nos exemplares de literatura nigeriana que chegam aqui, como nos livros de Chimamanda Ngozi Adichie. Akin, o outro personagem, também narra alguns capítulos.
Os dois se conheceram na faculdade e o livro lembra os primeiros anos do casamento. A condição de Yejide de que a relação seja monogâmica, aceita por Akin, dá o teor da união. As dissensões aparecem quando o casal não consegue gerar filhos, e a família do homem pressiona para que ele arranje outra mulher (o casamento poligâmico para o homem chegava a ser norma em comunidades iorubas).
A chegada da segunda esposa e os ressentimentos que o episódio desperta são apenas alguns dos bordados que o romance passa a tecer, sempre sob o signo da mentira e, mais tarde, tragicamente, da morte.
O debate sobre o amor, portanto, é a primeira camada do livro: “Então, o amor é uma prova: mas em que sentido? Com que finalidade? E quem se submete à prova? Mas acho que eu realmente acreditava que o amor tinha o imenso poder de trazer à luz tudo o que havia de bom em nós, de nos aprimorar e nos revelar a melhor versão de nós mesmos”, se questiona a personagem principal, em lembrança (o livro é traduzido por Marina Vargas).
Outra camada aparece na forma de Ibrahim Babangida, militar que assume o governo nigeriano em 1985 após um golpe de Estado. Poucos meses depois, ele manda executar inimigos políticos por conta de desconfianças. O episódio é lembrado no livro, e a narradora cita, inclusive, um encontro prévio dos escritores Chinua Achebe e Wole Soyinka com o ditador, pedindo por clemência. A solicitação não foi atendida, e “levaria anos para que outros militares questionassem as evidências com base nas quais (os adversários) tinham sido condenados. Na época, a Nigéria estava em plena lua de mel com Babangida, e, como a maioria das novas esposas, não fazia interrogatórios ainda”, conforme diz a narradora.
Um terceiro movimento do livro se faz no tempo: ao longo do romance os personagens estão no futuro, em 2008, cerca de 20 anos depois dos acontecimentos, portanto.
A habilidade da escritora em prender todos esses fios é notável. O livro foi selecionado pelo The New York Times e pelo The Guardian como um dos melhores de 2017, ano em que foi lançado em inglês. No Times, Michiko Kakutani apontou que ainda que o livro tenha acenos para, por exemplo, Garota Exemplar, de Gillian Flynn, “Fique Comigo é totalmente fresco, graças à habilidade da autora de mapear relações familiares emaranhadas com nuances e precisão, e a seu entendimento íntimo dos anseios, medos e autoilusões de seus personagens”.
Em entrevista por e-mail, Adebayo diz estar sempre interessada em encontrar correspondências fora da narrativa primária. “A trajetória do casamento definitivamente está em paralelo com a ditadura no nível nacional. Os pontos altos e de quebra para ambos frequentemente coincidem, de propósito”, esclarece.
Nascida em Lagos em 1988, a autora tem dois mestrados em escrita criativa, um deles na Universidade de East Anglia, no Reino Unido, onde estudou com Margaret Atwood (autora de O Conto da Aia). Outra influência no trabalho de Adebayo é sua conterrânea Chimamanda Ngozi Adichie, autora de, entre outros, Americanah.
“Há uma cena de Hibisco Roxo, de Chimamanda, na qual a personagem Kambili tem seu cabelo feito no mercado. O tratamento que Adichie dá a essa cena foi para mim intricado a ponto de se tornar quase tangível. É uma cena na qual pensei muito durante a escrita de Fique Comigo, considerando como poderia transmitir a intimidade entre cliente e cabeleireira na página. Também quis dar para Yejide um espaço dominado por mulheres que poderia ser um conforto para ela mesmo tangencialmente, conforme sua vida em casa se torna cada vez mais insuportável”, diz.
Para ela, seu país se mantém “profundamente patriarcal”, e até hoje a poligamia para homens é aceita, “embora não esteja tão na moda quanto antes”.
“As mulheres, na Nigéria, são frequentemente tratadas como apêndices, até pela lei”, lamenta a escritora – ela acredita que as coisas estão mudando, num passo mais lento do que o necessário, porém.
“Acredito que a literatura pode cristalizar uma experiência particular com tanta força e clareza a ponto de instigar mudança ou pelo menos compelir uma comunidade a considerá-las. Além disso, a intimidade peculiar a que um texto convida o leitor, por várias horas ou dias vendo o mundo pelos olhos de outra pessoa, pode desafiar os preconceitos que temos sobre os outros.”
Uma imagem é recorrente no livro. “Eu não tinha pai, mãe nem irmãos”, diz a narradora, Yejide. “Akin era a única pessoa no mundo que realmente notaria se eu desaparecesse. Hoje digo a mim mesma que foi por isso que me esforcei para aceitar cada nova humilhação: para ter alguém que procurasse por mim caso eu desaparecesse.” Essa busca por permanência, que parece insistir em se dissipar numa névoa opaca, é um dos traços mais presentes nesse belo livro de estreia.
FIQUE COMIGO
Autora: Ayobami Adebayo
Tradutora: Marina Vargas
Ed.: HarperCollins Brasil (240 págs., R$ 39,90, R$ 29,90 o digital)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.