Há mais histórias por trás daquelas canções do que contam suas letras. Afinal, a voz respira, as cordas timbram, o piano responde ao peso dos dedos e a bateria tem tanta verdade que quem toca parece estar logo ali, ao lado de quem ouve. A história do primeiro álbum de Paula Santisteban não começa na poesia, mas no som. E é por ele que, se esse texto fosse um filme, a cena sairia agora de um estúdio em São Paulo, com o produtor Carlos Eduardo Miranda dando as ordens, e cairia em uma pensão de Sorocaba dos primeiros anos do século 20, com um casal de espanhóis, Juan e Encarnación, e seus sete filhos.
Os Santisteban chegaram ao interior de São Paulo cheios de sonho e de poesia. Juan, bisavô de Paula, era ator e escritor, se precisasse fosse, em quatro línguas. Sua mulher, Encarnación, sentia todo o universo que pulsava dentro e fora de si mesmo tendo perdido a fala e a audição para uma meningite. Um filho foi tocar violão, um outro piano, outro se tornou pintor. As meninas bailavam flamenco. A família começou então a mudar as paredes de lugar e a erguer um palco na própria pensão que, anos depois, se tornaria o Alhambra, o primeiro teatro de Sorocaba.
Quatro gerações depois, Paula está diante de Miranda e à frente de 12 músicos para gravar seu primeiro álbum. São dez canções, a maioria assinada por ela, algumas em parceria com o marido Eduardo Bologna, seu guitarrista e diretor musical. Os músicos são muitos e bons, dentre eles Eric Budney (baixo), Daniel de Paula (bateria), Nahor Gomes (trompete), Daniel Allain (flauta e sax alto) e Ed Côrtes (sax tenor, sax barítono e clarinete), filho do pianista e arranjador Edmundo Villani-Côrtes.
Não se usam mais conjuntos tão populosos em gravações – sobretudo cantoras em seus primeiros álbuns – poucos fazem sons sem a avassaladora compressão de sons que as plataformas digitais demandam, tornando tudo vibrante e linear, e quase ninguém, se não ninguém, ensaia um ano e meio para gravar um disco. O som extremamente macio que Paula e seu grupo conseguiram não passa apenas pelo microfone Neumann M49 de 1952 e outros equipamentos que parecem trazer tudo para mais perto da alma. Eles quiseram mesmo fazer as coisas como eram antes da era do Spotify desde que perceberam que uma geração está crescendo sem ouvir o som dos instrumentos como são. “Há crianças que nunca ouviram um”, diz Paula.
Em um filme, a cena sairia desta vez do camarim do Sesc Belenzinho, onde os músicos estarão no dia 9 para o lançamento do álbum com todo o time que gravou em estúdio (outra raridade), e cairia em alguma escola de São Paulo de dez anos atrás.
Antes de pensar em gravar, Paula e Eduardo ensinavam. Criaram juntos um projeto com uma proposta pedagógica cativante e percorreram com ele mais de 400 escolas. O Música em Família, com aulas presenciais que passavam por movimentos e ritmos como o folk, o jazz manouche (cigano) e a world music, rendeu dois discos e quatro livros musicados que venderam 200 mil cópias.
Fazer crianças ouvir uma música que não lhes fosse imposta era uma questão de honra desde que Paula passou por uma competição de talentos no Domingão do Faustão, em 2002. Depois de ficar entre as 12 finalistas de 30 mil inscritos, fez reuniões com gravadoras e ouviu tantas derivações da frase “essa sua música precisa ser mais simples para que as pessoas entendam” que partiu para o ataque. “Aquilo me fez querer mudar tudo.”
Carlos Eduardo Miranda entra na história quando Paula e Eduardo passam a procurar por um produtor com mais vida do que técnica. Assim que ouviu o disco, baladas arrebatadoras como As Janelas da Cidade, Enquanto Não Passar e Do Outro Lado da Rua (tão jovem guarda com aquele timbre de teclado), Miranda, sensibilizado pela paternidade recente, chorou e decidiu trabalhar com a cantora. No dia 22 de março de 2018, Paula foi para um estúdio de Bauru refazer a voz de Diferente de Ninguém, que Miranda gostava tanto por falar que “cada louco tem lá dentro do peito uma dor que não sabe o por quê”. Mesmo sem conseguir se concentrar, Paula ainda tentava gravar quando o marido entrou para avisar que Miranda havia acabado de morrer e de deixar a dor dos loucos na história dos Santisteban.
PAULA SANTISTEBAN
Sesc Belenzinho (Teatro).
Rua Padre Adelino, 1.000, tel. 2076-9700. Sáb. (9/3), 21h.
R$ 6 a R$ 20
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.