Variedades

Companhia do Latão vai para a rua encontrar o público

Quando a Companhia do Latão fez as primeiras apresentações de “O Mundo Está Cheio de Nós”, nos arredores do Teatro Flávio Império, os artistas da peça puderam confirmar a adesão do público – em geral pessoas que não veem o teatro como seu principal passeio ou evento preferido. Depois de ser assistido em regiões como Cangaíba, Freguesia do Ó, Bom Retiro e o Mooca, o novo espetáculo da companhia faz temporada no Sarauzódromo da Biblioteca Mário de Andrade, a partir desta segunda-feira, 13.

A prévia circulação da montagem, antes de se fixar em um espaço para temporada, tem muitos motivos, conta o diretor Sérgio Carvalho. “Nós estávamos buscando uma história que estivesse ligada aos problemas e características da cidade.” Outro desejo, ele acrescenta, era que a peça fosse projetada para locais abertos – os chamados espaços não convencionais. “Estar próximo de um teatro nos ajuda, em caso de chuva, mas a peça nasce para ser vista ao ar livre.”

Quando estreou “Lugar Nenhum” (2018), inspirado na obra em Chekhov, o Latão focou na história de uma família que festejava o aniversário de um estudante, durante os difíceis anos da ditadura. Mais atrás, em “O Pão e a Pedra” (2016), a companhia se apropriou do pensamento religioso – mais precisamente a Teologia da Libertação, que esteve ao lado das mobilizações de greve no ABC, entre 1970 e 1980. Nas duas montagens, a luta das personagens parecia estar ligada à construção de uma força coletiva, da resistência como postura de um determinado grupo social.

Já em “O Mundo Está Cheio de Nós”, a companhia parece querer diluir tanto os laços quanto os territórios em busca de ampliar a visão. No centro da trama está a prostituta Valéria Dim, no papel de Helena Albergaria, que tal como a otimista Cabíria do filme de Fellini, inicia uma jornada após levar um golpe do namorado. No caso de Noites de Cabíria, o golpe imposto à prostituta baixinha é ser empurrada em um rio de Roma e ter sua bolsa levada pelo companheiro Giorgio. Após ter o coração despedaçado, Valéria promete a si mesma que não será mais enganada e passa a trilhar pela cidade. “No filme, Cabíria começa indo para uma região bem rica da cidade. Na peça, Valéria sairá da Liberdade, onde mora, e seguirá para os Jardins”, explica a atriz.

Quem lembrar do longa de 1957, que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro, também vai saber como era o figurino que eternizou a pequena Cabíria – um casaco de pele surrado e uma blusinha listrada – interpretada de Giulietta Masina. Ao compor sua Valéria, Helena garante que chegou em um formato semelhante partindo de outras origens, como a música e até mesmo da arte drag queen. “Durante a criação do espetáculo eu buscava na música punk algumas referências para o visual. Até lembrei daquele programa Perdidos na Noite, do Faustão, nos anos 1980. Era um espaço na televisão que você podia ver e ouvir esse estilo musical. A vocalista trans Laura Jane Grace, que tocou na banda Against Me! dizia que o punk foi criado para que qualquer pessoa pudesse protestar, sem que fosse músico ou especialista. De alguma forma, isso está no espírito da peça.” Outro elemento que a levou a Cabíria, foi a adorada Bob, The Drag Queen, persona do comediante Christopher Caldwell. “Ela é engraçada e também carrega essa energia de desconstrução, de um humor rasgado.”

Para o diretor, a peça de Brecht “A Boa Alma de Setsuan” também foi um guia para o espetáculo. Na história escrita pelo alemão, o debate sobre a bondade tem como centro a província de Setsuan, que em uma noite é visitada por deuses disfarçados. A única na cidade que recebe bem os viajantes é a prostituta Chen Tê – papel já vivido por Denise Fraga em 2010 – que oferece lugar para que os seres divinos descansem. Sua hospitalidade e generosidade são recompensadas com muito dinheiro pelos deuses revelados. “A peça revela um sentimento das ruas, um comportamento, como se a cidade fosse uma personagem”, afirma Carvalho. Ao deixar a antiga profissão, a mulher abre uma tabacaria na cidade, o que não significa que ela conquistará o respeito de seus conterrâneos.

Para ele, “O Mundo Está Cheio de Nós”, busca suscitar as difíceis condições de vida de uma metrópole, pelo olhar, digamos, otimista, de Valéria. “Ela vive as realidade de alguém que tem o corpo, e o prazer, como mercadorias. Sua entrada na prostituição se dá como uma descoberta. No início não como necessidade. Aos poucos ela vai descobrindo como se joga.”

No palco, nossa Valéria é acompanhada de mais oito atores e atrizes, e três músicos, que na peça juntos perambulam por lugares como Liberdade, Jardins, Cracolândia, Parque do Trianon e a Represa Guarapiranga. Helena explica que a música cumpre papel especial na narrativa. “Como não há elementos visuais que apontem para essas regiões, são os músicos que pontuam as transições de lugar para os lugares.”

O diretor Sérgio Carvalho acrescenta que a peça do Latão tem um tom “honesto, de peito aberto.” Talvez, como a frase atribuída a Einstein: “Prefiro ser otimista e estar errado, a ser pessimista e estar certo.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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Biblioteca Mário de Andrade. Rua da Consolação, 94. Tel. (11) 3775-0020. 2ª, 3ª, 20h, sáb., dom., 17h. Grátis. Até 30/5.

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