Nos anos 20 do século passado, o jovem Roberto Pisani Marinho gostava de samba e adorava divertir-se num Rio de Janeiro alegre, onde seu pai Irineu dava duro na redação da Gazeta de Notícias e depois no vespertino A Noite, que ele próprio criou. O Rio que importava, nesses idos da Primeira República, estendia-se do Palácio do Catete, sede do governo, até pouco além da Tijuca para um lado e de Copacabana no outro.
É nesse universo que começam as 576 páginas de Roberto Marinho – O Poder Está no Ar, livro que o jornalista Leonencio Nossa – repórter da sucursal do jornal O Estado de S. Paulo em Brasília – lança agora pela Nova Fronteira. E, como qualquer boa história sobre jornalistas importantes, esta traz à cena gente famosa, conflitos em família, pequenos e grandes dramas da imprensa e, logicamente, muitos bastidores da política. Marinho é o centro de tudo, mas o livro vai além dele.
Foram seis anos de pesquisa e mais de 100 entrevistas, muitos recortes, cartas pessoais, anotações do biografado e documentos do Arquivo Nacional e da Biblioteca Nacional. Com tudo isso em mãos, Nossa conta a vida do herdeiro e comandante do que veio a ser o Grupo Globo, desde seu nascimento em 1904 até 1969, quando entrou no ar o Jornal Nacional. Um segundo volume, que vai desse ano até sua morte, em 2003, está sendo definido.
É um caminho que Nossa já conhece. Em 2012, ele escreveu, também depois de anos de pesquisa, Mata! – O Major Curió e a Guerrilha do Araguaia, sobre as façanhas de Sebastião Curió, um fiscal da ditadura na Amazônia nos anos 70.
O herói de fato da primeira parte do novo livro, no entanto, é o pai de Roberto Irineu Marinho – que varava noites nas redações para sustentar a família. “Desde o primeiro momento como dono de A Noite, ele encarnou a figura do chefe duro e implacável”, escreve Nossa.
O que ficou na lembrança de Roberto, dessa fase, foi um pai “que dava broncas sempre num tom baixo de voz” – e, dos seguidos episódios familiares, resta a impressão de uma relação fria entre os dois. Ela já se prenunciava em caso recordado por ele mesmo, no qual leva um pito do pai: “Senta aí e escreve uma composição. Acho que você é incapaz disso”. A história que se conta é que Roberto teria respondido: “Eu não me presto a provas de amanuense”.
As coisas mudam a partir de 1925. Como conta o repórter, Irineu já havia passado A Noite adiante, decide fundar O Globo e morre depois de 21 dias do novo jornal. Roberto, filho mais velho, ainda um bon vivant, herdou seu lugar, mas sem assumir cargo de mando. Quando assume, tempos depois, e a mãe lhe propõe vender o jornal, sua cabeça já era outra: “Vender coisa nenhuma!”.
A firmeza de posição, quando ele tinha certeza de algo, já era sua marca. Em 1931, aos 26 anos, Marinho assume em definitivo o comando da redação e a mãe lhe pergunta se ele teria sucesso. “Estou seguro disso”, responde Roberto, “mas a senhora não vai pôr os pés lá”. Na avaliação de Nossa, ele se saía a contento. “Não foi devorado pelos jogos de redação nem frente às dificuldades de manter o cadastro de anunciantes.”
Os anos passam e ele vai pegando prática. Getúlio Vargas havia assumido o poder meses antes, o ambiente político ainda era incerto e Marinho, que mostrava simpatia para com o líder gaúcho, começava seu “aprendizado” no jogo de influências. “Marinho aprendeu que jornal era a distribuição, a circulação e o jogo político”, diz o autor sobre esses novos tempos. O empresário já tinha, então, um intermediário importante: Herbert Moses, que fazia as vezes de interlocutor entre um governo autoritário – leia-se, em especial, Filinto Muller – e a classe jornalística.
Episódio marcante, nessa evolução, foi a Intentona Comunista de 1935 – que liquidou as tênues simpatias de Marinho e de O Globo com a esquerda. Certo dia, um subordinado o procura num bilhar e avisa: um major tinha mandado prendê-lo. “Ele vestiu o paletó, entrou no carro e foi sozinho à polícia. Passou a noite na Vila Militar, em Deodoro. O Globo não circulou no dia seguinte”, escreve Nossa. O episódio ficou por aí e perdeu peso nos meses seguinte, em que Marinho começou a construir uma relação pragmática com o governo, com o cuidado de não depender dele para seus negócios empresariais.
Ajudou muito, pelo caminho, a bem-sucedida estratégia de buscar o público infantojuvenil. O Globo Juvenil e O Guri revelaram-se um fenômeno de vendas, com edições de 100 mil exemplares – e entre as boas cabeças dessa aventura estavam talentos como Nelson Rodrigues e Antonio Callado.
Marinho, narra Leonencio, saía-se bem na arte de se relacionar com o getulismo, identificar-se com a classe dos empresários de comunicação e ser, ao mesmo tempo, um defensor da liberdade de informação. Numa reunião com o próprio Getúlio, ele se posicionou contra a censura. “Avaliou que bastaria um código de ética no setor”, escreve o autor. Nessa linha, em março de 1940, como integrante do Conselho Nacional de Imprensa, ele votou contra a intervenção de Vargas no jornal O Estado de S. Paulo. Como único contrário, recusou conselhos para mudar o voto. “Prefiro ser derrotado. Não vou aprovar esse absurdo”, disse ele, segundo relembrou, tempos depois, em conversa com o filho João Roberto.
Em outro período, já com Getúlio apeado do poder, Marinho enfrenta as cobranças pelo acordo com a Time-Life, onde “luta até o fim”, escreve Nossa, contra João Calmon, Assis Chateaubriand e Carlos Lacerda. Perde essa etapa da briga, “mas é bom pra ele. A Time-Life deixa de ser sócia e vai virar credora”.
O livro ganha dramaticidade em seu terço final, quando vêm à tona os anos 50 e 60. O vaivém de influências agora inclui figuras como João Goulart, Lacerda, mais Castelo Branco e os militares que tomam o poder em 1964. Nossa define, por exemplo, as relações de Marinho com Goulart: “O presidente foi tratado como um defensor da liberdade e da democracia, mas ao mesmo tempo tornava-se, sob o ângulo do jornal de Marinho, uma figura menor no debate sobre a ameaça comunista”.
É dessa fase – já no governo Castelo Branco – uma célebre conversa do ministro da Justiça, Juracy Magalhães, com donos de jornais, para avisar sobre a censura. Ao anunciar que “de agora em diante nenhum comunista pode trabalhar em jornal”, Marinho teria dito: “Ministro, no meu jornal mando eu”. A versão que ficou, explica Nossa, foi que ele disse “nos meus comunistas mando eu”.
O autor fez uma conta, ao final, sobre as ações de seu biografado. Entre 18 golpes ou tentativas fracassadas de tomada de poder à força desde os anos 30, “ele aderiu a sete, se posicionou contra nove e ficou neutro em dois”. Mas pondera que “a matemática não define o perfil democrático ou ideológico de Marinho. No emaranhado de paradoxos, ele mostrou coerência, em todos esses momentos, ao defender sua empresa”.
O PODER ESTÁ NO AR
Autor: Leonencio Nossa
Editora: Nova Fronteira (576 págs., R$ 89,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.