Rio de Janeiro, 1937 – início do Estado Novo. A ditadura se prolongaria até 1945. No interior da Casa de Detenção, o casal de alagoanos se reencontra. Ele, nascido em Quebrangulo, 44 anos, escritor amigo de Rachel de Queiroz – também nordestina. Fora preso em Maceió, e, transportado até ali, em meio a dezenas de outros prisioneiros, no porão sujo e calorento de um navio. Ela, médica, 29 anos. Ocupava, no presídio, uma cela, junto com outras mulheres. Para vê-la, o escritor descalçou os tamancos, subiu – de pijama -, numa janela. E, se agarrou em grades pintadas de preto. Com sacrifício, porque havia sido operado numa perna.
Pendurado na janela – escreveu ele, dez anos depois – “distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos”. “O que senti foi surpresa – ele prosseguiu, -, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital”. Em relação à médica, ele acrescentou: “Sabia-a culta e boa, Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço”.
Depois, confessou o escritor: “De pijama, sem sapatos, seguro à verga preta, achei-me ridículo e vazio; certamente causava impressão muito infeliz”. A médica, porém – ele concluiu -, “acanhada, tinha um sorriso doce, fitava-me os bugalhos enormes e isto me agravava a perturbação, magnetizava-me”.
Rio de Janeiro, hoje – 74 anos depois. O escritor e a médica se mantêm cada vez mais presentes na vida dos brasileiros, embora estejam mortos, há mais de uma década. Ele, há 58 anos. Ela, há 11 anos. Só um dos 19 livros do escritor Graciliano Ramos -, “Vidas Secas” -, em 2007, já tinha tido 103 edições, no Brasil. E seus livros, há 3 anos, no Exterior, haviam sido publicadas em 16 línguas diferentes.
A psiquiatra Nise da Silveira, depois da prisão, também alcançaria projeção internacional. Defensora da livre expressão artística dos pacientes na busca da saúde mental, ela criou o Museu de Imagens do Inconsciente. Atualmente, o museu é um modelo para outros museus, centros de cultura e instituições terapêuticas. Em vários estados brasileiros, e, em Portugal, na França e na Itália.
Há poucos dias, a foto de Nise foi exibida nas bancas de jornal do país. Ocupava inteiramente a capa de uma edição especial da Revista Ciência & Vida – Psique, dedicada à importância que ela ganhou, por combater os tratamentos agressivos, dentro da Psiquiatria.
Aquele encontro de Nise com Graciliano está intacto, com todos os detalhes do contexto opressivo e humilhante no qual ocorreu, na 44ª edição daquele texto produzido por ele, o livro “Memórias do Cárcere”, um documento revelador da estupidez da repressão numa ditadura do nosso país.
Documentos como aquele, produzidos nas prisões de outra ditadura, a que foi imposta entre os anos de 1960 e 1980, continuam sendo escondidos dos cidadãos brasileiros, de hoje. Não é difícil entender por que.