O arcebispo de Recife teve uma reação surpreendente ao assistir à encenação teatral de um texto de Plínio Marcos, depois do Golpe Militar de 1964. Em suas peças, Plínio retrata não somente a degradação em que vivem pessoas marginalizadas pela sociedade brasileira. Mas, também, o inferno particular que cada uma cria para as outras pessoas que convivem com elas, como se precisassem descarregar todo o ódio provocado pelo maltrato físico e psicológico que sentem, imposto por sua situação material miserável.
Por exemplo, na peça “Navalha na Carne” três personagens estão num quarto de pensão barata: a prostituta Neusa Sueli, o homossexual Veludo e o gigolô Vado. Ali, encontram dentro de si forças insuspeitadas para se atormentarem mutuamente. A linguagem que usam incorpora todos os palavrões ultrajantes disponíveis em língua portuguesa. Não por acaso, as peças do dramaturgo horrorizavam as senhoras de alta classe média do país. As mesmas que, com moralismo vesgo, tinham apoiado a derrubada de seu cargo, do presidente eleito João Goulart, grande fazendeiro, sob a acusação de “comunismo”.
Ao sair do teatro, dom Hélder Câmara se viu cercado por repórteres. O arcebispo os atraía porque, com coragem, denunciava, no Exterior, os casos de tortura e extermínio de presos políticos no Brasil. E, era odiado pelos golpistas de 1964.
“Esta peça de Plínio é religiosa”, disse dom Hélder, para espanto dos repórteres. O arcebispo havia percebido que a profundidade com a qual o dramaturgo mergulha na sordidez humana expressa um anseio por algo situado além das limitações dos homens, na sua capacidade de sofrer e fazer sofrer. Um anseio por algo absoluto, metafísico, transcendente. Religioso, para o arcebispo.
Transcendência como aquela o poeta de cordel nordestino Antônio Barreto não encontra no programa “Big Brother Brasil”, de grande audiência. Nele, uma emissora de televisão brasileira mostra – diz ele – apenas “a esperteza, a malandragem, a baixeza”. “Um cenário sub-humano”, enfim.
Barreto percebe, com lucidez, que os personagens do programa estão presos unicamente à vaidade e à preocupação com a estética corporal. E, afundam na falta de ética e num “mar de vulgaridade”, afastando do programa qualquer veleidade educativa. “Não se vê força poética”, diz Barreto. Ali, a miséria humana psicológica está encerrada em si mesma. Não conduz os espectadores a um nível mais elevado de aspirações humanas – como a da transcendência religiosa, na peça de Plínio Marcos, segundo dom Hélder, ou a da poesia, segundo o próprio Barreto. Ao contrário – denuncia o poeta -, apenas deseduca, emburrece, atrofia a mente dos telespectadores. Barreto prossegue: é um desserviço à juventude que precisa de outro tipo de transcendência, aquela dada pelo sentimento de esperança.
Barreto diz ainda: “Esse programa da Globo/ vem nos mostrar sem engano/ que tudo que ali ocorre/ parece um zoológico humano”.
Subtítulo do poema dele: “Um programa imbecil”.
Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP