Há cinquenta anos, as moças se casavam depois de passar a juventude sob rígido controle comportamental mantido por suas famílias, igrejas e comunidades. Quando se tornavam mães, eram apresentadas, nas letras de música, como nada menos que “santas”, em contraposição às “mulheres perdidas”, aquelas que fugiam daqueles controles, quebrando os tabus da virgindade e da fidelidade feminina. Na letra de “Coração Materno”, cantada por Vicente Celestino a figura da mãe surgia envolvida de modo surpreendente numa narrativa que tratava, sobretudo, de um comportamento amoroso, cultivado na época. Conhecido como “prova de amor”, era uma espécie de teste a que uma pessoa submetia outra, a fim de se assegurar de que ela a amava.
Esta “prova de amor”, na narrativa, era dada por um camponês. Hoje, ela não seria apenas considerada piegas e bizarra. Seria, também, certamente, enquadrada nas leis que punem crimes hediondos. Pois, na narrativa, o camponês se empenha em convencer uma jovem de que está disposto “a roubar e a matar” para “provar” seu amor por ela. E a jovem, ao ouvi-lo, inesperadamente, se revela sádica, como uma personagem de filme de terror. Impõe: “Se é verdade tua louca paixão, parte já, e, para mim, vá buscar de tua mãe, inteiro o coração". O camponês parte. E, decidido a cometer o matricídio, “chega à choupana o campônio”. A narrativa prossegue: “Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar. Rasga-lhe o peito o demônio, tombando a velhinha aos pés do altar. Tira, do peito sangrando da velha mãezinha, o pobre coração”. Com o coração nas mãos, o camponês volta, apressado. O fecho dramático ocorre, numa cena de puro Teatro NonSense. Na pressa, o rapaz termina se desequilibrando e cai na estrada, quebrando uma perna. Com isto, solta das mãos, sem querer, o coração da mãe. Que, então, começa a falar, desvendando a verdadeira “prova de amor”, escondida na narrativa. “Nesse instante, uma voz ecoou: – Magoou-se, pobre filho meu? Vem buscar-me, filho, aqui estou eu. Vem buscar-me que ainda sou teu!”.
Portanto, no eixo central desta narrativa, havia a suposição de que o amor materno podia ser “provado” através de muito sofrimento físico. Ocorre que aquelas mães da época desta música não puderam se preparar melhor para a criação dos filhos, nas universidades, por exemplo. Retidas no espaço doméstico, elas tiveram de atuar unicamente sob a influência de seus pais e das únicas escolas que puderam frequentar, as dos níveis inferiores do sistema de ensino, onde antigas práticas eram conservadas e haviam sido empregadas na criação delas próprias. Naquelas escolas, as crianças eram submetidas a castigo físico, com uso de palmatória, espécie de raquete menor que a usada nas disputas de pingue-pongue, de madeira maciça. Com as palmatórias, as professoras batiam com força nas mãos abertas das crianças. Como esta mesma Didática, as mães, “para o bem” de seus filhos, quando julgavam necessário, os puniam com beliscões, puxões de orelhas e de cabelos. E, em casos que consideravam mais graves, os forçavam a se ajoelharem sobre grãos de milho. Ou os espancavam com chinelos e cintos. Em casos extremos, de punições mais pesadas, as mães apelavam para os maridos. E as crianças eram espancadas com os mesmos instrumentos, porém, aplicados com a força de homens adultos, os pais delas.
Esta mãe, “santa” mas punitiva, é a da letra da música “Mamãe”, lançada em 1959 na voz de Ângela Maria. “Ela é a dona de tudo. Ela é a rainha do lar… Eu te lembro chinelo na mão, o avental todo sujo de ovo”.