Nem a passagem dos 50 anos – a serem completados nas próximas semanas – foi suficiente para retirar dos armários e trazer à luz do dia velhos esqueletos neles lá enfiados, desde1964, quando foi instaladano Brasil uma ditadura militar. A providência maneirosa foi obra dequem não suportaria ter de lidar com eles diante da opinião pública.
Um destes esqueletos frei Betto tenta, inutilmente, pôr à vista de todos, há 20 anos. Mas a alta hierarquia de sua própria igreja insiste em desviar os olhos.Naquele fatídico, 31 de março de 1964, o dominicano estava em Belém do Pará, hospedado no Palácio Arquiepiscopal, a fim de acompanhar um encontro latino-americano de estudantes. Na época, ele coordenava nacionalmente a Juventude Estudantil Católica, movimento da Ação Católica, criada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Quando soube da derrubada de Jango, o frade passou a buscar informações a respeito do que ocorria nopaís, valendo-se do aparelho de televisão do arcebispo, dom Alberto Gaudêncio Ramos. A certa altura, segundo seu relato, foi surpreendido com a aparição no vídeo da figura do seu anfitrião, queparticipava de um programa da TV Marajoara, único canal de televisão então existente na capital paraense. Ali, diante das câmaras, segundo frei Betto, naquele momento de tensa caça a pessoas comuns, perseguidas por acusações infundadas de atentarem contra a ordem vigente no país, dom Alberto teria revelado nomes de padres de seu clero que seriam subversivos. Após o programa, militares levaram três padres para o QG do Exército. Pouco depois, dom Alberto os afastou do Pará. Um delespassou a viver em Nova Friburgo servindo à Igreja Católicaaté hoje. Os outros dois foram acolhidos por dom Hélder Câmara, em Recife. E, em Pernambuco morreram, anos mais tarde, ainda investidos da condição de religiosos.
Este relato, frei Betto fez para O Estado de São Paulo, que o publicou no dia 31 de março de 1.994. Em 1.999, ele o repetiu duas vezes: no livro “Hélder, o dom”, impresso pela Vozes,editora católica, e num perfil dele,elaborado e publicado como matéria de capa por a “Palavra”, revista de circulação nacional, dirigida pelo cartunista Ziraldo. Recentemente, frei Betto ainda o inseriu no registro de sua história pessoal, feito no livro autobiográfico “Alfabetto”. Embora repetido,jamais autoridades da Igreja Católica tomaram conhecimento do relato de frei Betto. Ninguém fez justiça aos três padres. Em vez disto, no Pará, frei Betto ficou entregue à manipulação do sentimento religioso que já fora praticada pelos golpistas em 1964, pretensos defensores de uma sociedade “democrática e cristã” para o Brasil. Raposa velha da política provinciana, o finado ex-governador Hélio Gueirospassou a ofender publicamente frei Betto através de artigos furiosos, chamando-ode “excomungado parcial”, fosse isto lá o que fosse. Insistindo em que o relato dele era uma denúncia vil e covarde porque atingia uma pessoa sem condições de se defender, pois não mais vivia. Tese que levada a sério, obviamente, impediria a pesquisa do passado. Nisto ficou o testemunho insistente de frei Betto. Oesqueleto ainda permanece no armário. Em escuridão nem um pouco santa, aliás.