Mundo das Palavras

Festas das Babettes

Coluna do jornalista Oswaldo Coimbra, professor doutor em Comunicação

Sentada no banco do vagão do metrô, a moça, certamente pressionada por seu horário de trabalho, parece não se importar com a má impressão que poderá causar em quem só admite cuidados físico-corporais na discrição dos ambientes domésticos. Abre sua bolsa e dela retira um conjunto de objetos que nós, homens, estamos acostumados a encontrar nas estreitas prateleiras das portas dos nossos armários de banheiros, embora nunca nos aproximemos deles, como se eles estivessem envolvidos em tarjas de uso exclusivo, reservados apenas para estas figuras que dão sentido e graça a cada fase das nossas vidas. Mãe e tias, na nossa infância; irmãs e namoradas, na juventude; esposa e filhas, na maturidade.

Pincéis, batons, lápis de olho, estojos de pó, com espelhos pequenos nas tampas, desde nossa infância, sempre se misturaram, naquelas prateleiras, com nossas escovas de dente. Depois, quando crescemos, passam a dividir espaços com nossos cremes de barbear e loções pós-barba. Permanecendo, porém, sempre obscuras as utilidades que têm para as mulheres.

Pois, ali, instalada na metade do banco de um vagão, em movimento, dentro do breve espaço de tempo entre estações, a moça com segurança de quem acumulou longa experiência na utilização deles, começa a manipulá-los publicamente. Imediatamente, os marmanjos em volta dela se sentem indiscretos e privilegiados. Todos fascinados com o desvendamento inesperado de um ritual que as mulheres executam somente por detrás das portas fechadas dos banheiros. E que, muitas vezes, sem sabermos exatamente o que elas fazem, nos levam à exasperação, pelo tempo que gastam nele. Sobretudo, se temos urgência em sair de casa com elas.

Os gestos da moça são precisos, certeiros. Abre e fecha estojos, exibindo desenvoltura. Com esponjinhas, retira deles camadas do pó compactado que aplica com destreza nas bochechas. Ora reduz, com a própria esponjinha, o material excessivo, ora reforça a camada já aplicada no rosto. Quando, por fim, parece satisfeita com o resultado obtido até ali, passa a atuar em outras áreas de seu rosto.

Nos olhos, usa lápis. Repuxa sua pele, com um único dedo, para enxergar no espelhinho do estojo toda a linha já desenhada por ela nas bordas das pálpebras. Em seguida, se dedica às sobrancelhas e pestanas.

É uma artesã veterana modelando seu material com destreza. A certa altura, dá a impressão de que considera concluído seu trabalho. Porém, mais uma, mais outra, e, ainda outra – diversas vezes, aprecia-o na sua totalidade refletida no espelhinho. Com aquele olhar frio, duro com o qual estamos acostumados a vê-las se autoanalisando diante de qualquer espelho, inesperadamente colocado à disposição delas em lugares como hall de entrada de prédios.

Impossível saber se a moça está completamente satisfeita. Aparentemente fez todo o possível dentro do breve tempo à sua disposição, com suas habilidades evidentes.

Guarda os apetrechos novamente na sua bolsa. Em seguida, relaxa as costas apoiando-as firmemente no encosto do banco e respira profundamente. No rosto trabalhado, uma expressão de confiança, de quem se sente mais forte, pronta para enfrentar, nas ruas e no trabalho, os olhares crítico-analíticos de quem verdadeiramente saberá julgar sua obra recém-acabada: as outras mulheres. Posto que nós, homens, eternos distraídos, infelizmente, sequer distinguimos uma bisnaga de corretivo de mancha no rosto, de um vidro de corretivo de erro de digitação. Embora, claro, amemos com fervor, os rostos delas quando ficam inebriados pelos efeitos das cores e linhas que aplicam neles. Afinal, dentro de nossa embaraçosa palermice diante destas sutilezas em que as mulheres são mestras, sabemos bem, elas são admiráveis na manipulação de elementos naturais. Conseguem isto sem sacrificar em nada suas inteligências e competências profissionais.

Não são elas que um dia, saem de seus escritórios, das escolas onde lecionam, das fábricas e lojas onde trabalham, para nos dizerem: “estou grávida”? Quem, depois de ouvir isto, não se espanta, fica maravilhado e, sempre intrigado com aquele imenso poder revelado por sua companheira, passando a olhá-la com admiração? Embora, na verdade, diariamente as vejamos no exercício deste mesmo poder. Como, por exemplo, quando buscam descansar de suas obrigações habituais e resolvem  atuar  como a Babette do filme, na manipulação de sabores naturais, com emprego de água e fogo.

Hoje, é verdade, alguns homens aparecem frequentemente nos meios de comunicação como chefes de cozinha talentosos. Mas, ninguém duvide: seus DNAs devem trazer marcas das qualidades de antigas mulheres de suas famílias. Daquelas Babettes, capazes de transformar cozinhas em oráculos de deuses que promovem os prazeres das mesas e o congraçamento humano, em volta delas.

Que sejam sempre benditas as mulheres!

Quem, se não elas, nos ensinam a celebrar a vida, a ter gratidão por esta aventura, às vezes, estranha e amarga, mas sempre apaixonante, de simplesmente existir.              

 

 

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