Mundo das Palavras

Sonhando como dom Orani Tempesta

Coluna do jornalista Oswaldo Coimbra, professor doutor em Comunicação

Havia conseguido um horário na agenda de dom Orani Tempesta, naquele ano de 2004, me apresentando na sede da Cúria Metropolitana de Belém como jornalista e pesquisador acadêmico. O impulso para procurá-lo surgira no momento em que havia descoberto que ele tinha título de especialista em Comunicação Social. E que, naquele momento, ocupava a presidência da Comissão Episcopal para a Cultura, Educação e Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Estimulava-me ainda a circunstância de ambos termos ligação ligação afetiva com São Paulo, embora, naquele instante, estivéssemos vivendo no Pará.

Quando chegou o dia do encontro  com ele, eu tinha em minha pasta, pronta para oferecer-lhe, a melhor lista possível de nomes, telefones e endereços com a qual alguém pudesse refazer o percurso feito por mim na preparação de um livro sobre a igreja do Pará, então sob a direção dele, cujo lançamento havia provocado intensa troca de acusações entre católicos. No livro, eu dera atenção a uma denúncia que frei Betto vinha repetindo através da imprensa paulistana: a de que dom Alberto Ramos, arcebispo do Pará, no início de abril de 1964, entregara padres de seu clero, engajados em obras sociais criadas sob inspiração das encíclicas do Papa João XXIII, à sanha dos anticomunistas que implantaram naquele Estado o regime ditatorial imposto ao Brasil pelas Forças Armadas.

Até ali, ninguém no Pará havia se importado com a denúncia.  Frei Betto invocava seu próprio testemunho. No dia do Golpe Militar, ele se encontrava em Belém, hospeado no Palácio Arquiepiscopal. Ocorre que naquele momento, sem conhecer frei Betto, eu também já tinha me hospedado várias vezes no mesmo palácio, devido à minha condição, na época, de aluno do Seminário Metropolitano. Mais até do que frei Betto, conhecia o anticomunismo visceral do arcebispo. Sabia que ele, para agradar aos golpistas, havia afastado no seu clero os padres Moisés Lindoso, Aluizio Neno e Diomar Lopes, respectivamente, assistente da Juventude Operária Católica, coordenador do Movimento de Educação de Base, e assistente da Juventude Universitária Católica. E, mais: eu conhecia o destino dos chamados “cristãos de esquerda”, durante o Golpe Militar porque o tinha transformado em tema da minha monografia de Mestrado.  Estava, portanto, preparado para enquadrar a denúncia de frei Betto no cisma ocorrido dentro da Igreja Católica, provocado por divergências políticas, no período do Golpe Militar, algo que os católicos do Pará, em 2003, supostamente ofendidos com o lançamento do meu livro não queriam levar em conta.  

Não imaginava, de qualquer modo, que os maiores opositores ao meu trabalho fossem ler apenas o título dele, longo como uma manchete de jornal português – “A denúncia de frei Betto contra o arcebispo do Pará em 1964: dom Alberto Ramos mandou prender seus padres”. Nem esperava os xingamentos públicos feitos a mim e a frei Betto por diversas personalidades provincianas, entre as quais o manhosíssimo ex-senador, ex-governador e ex-prefeito de Belém Hélio Gueiros. Velha raposa política, ele passou a chamar frei Betto de “quase ex-comungado”, fosse lá isto o que fosse. Reservando para nós dois o tratamento de “covardes capazes de atacarem um homem morto, portanto, indefeso”. 

Naquele clima, eu passara a sonhar com uma abordagem serena da denúncia de frei Betto, feita por alguém com autoridade dentro da Igreja paraense. A transferência para o Pará de dom Orani, vindo de São José do Rio Preto, sem envolvimento anterior com aquele assunto, parecia o início da realização do meu sonho. Como iria saber que em nosso encontro o prazer de sonhar estaria reservado apenas para dom Orani, depois de receber a lista com os dados necessários à localização tanto de frei Betto, como dos padres Moisés e Aluízio, os únicos ainda vivos, e ainda de todas as outras pessoas entrevistadas por mim na elaboração do meu livro? Pois foi o que aconteceu. Para perplexidade e desnorteamento meus, o ilustre prelado, mansamente adormeceu, sentado da poltrona em que havia se acomodado.  Depois, eu soube que estes sonos repentinos o acometiam também nas reuniões dele com seu clero. Nestas ocasiões, não sei como dom Orani retornava ao estado de vigília. Mas, no nosso encontro, ele acordou com a expressão fria de quem não iria dedicar um segundo sequer ao meu sonho. E não dedicou mesmo.        

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