Mundo das Palavras

O soco do Papa

A moça, deitada, encosta o rosto na pedra postada sobre o túmulo, como se não quisesse perder a intimidade do contato visual com a pessoa enterrada ali, num dos mais belos exemplares do rico acervo de Arquitetura Tumular do Cemitério da Consolação, em São Paulo. O artista que o criou conseguiu, com ele, expressar de modo eloquente, poético e inesquecível, a pungência de um sentimento humano: o da perda irreparável, pela morte, do convívio com quem se ama.

No final de um dia chuvoso em que minha filha fotógrafa, Rafaela Coimbra, registrou a imagem desta moça, ela ficou tão tomada pela carga de emoção represada naquelas recriações visuais deste sentimento – espalhadas pelo cemitério -, que, pretendendo fotografá-las uma após outra, resistiu às minhas advertências sobre a proximidade do encerramento do horário de visitação àquele local público.  E com isto provocou o surgimento de uma situação embaraçosa e patética. Nós dois ficamos trancados, sozinhos, no meio dos túmulos. E ali permanecemos enquanto anoitecia, por duas horas, debaixo de chuva, até sermos libertados por um funcionário do cemitério que, por acaso, passou por lá. 

Isto porque um sentimento humano pode ser tão forte que – visualmente impresso no corpo de alguém – é captável por um artista. Depois, reaparece, com toda sua intensidade, numa obra. A qual comove uma fotógrafa a ponto de fazê-la ignorar a ultrapassagem do tempoem que deve permanecer num determinado lugar. Tão profundo é este caráter de identidade da espécie humana,próprio dos sentimentos, que eles geram uma ligação consistente e repentina entre pessoas que jamais se viram e sequer viveram no mesmo lugar ou no mesmo tempo, como o grupo atemporal formado porpessoa que está enterrada debaixo da imagem da moça deitada, o artista que criou esta imagem e a fotógrafa que a registrou.

Em contrapartida, é certo,: nada compromete mais a possibilidade de vida em comum do que a falta de respeito aos sentimentos das pessoas. “Não se fala em corda, em casa de enforcado”, nos alerta a sabedoria popular para a necessidade de sermos sempre cuidadosos com os sentimentos de quem convive conosco, se queremos preservar nossos relacionamentos. Todos somos seres frágeis, vulneráveis, quando entram em jogo os laços com os quais coexistimos, isto é,existimos, ligados como siameses, àquilo que amamos ou odiamos. “Se meu amigo DoutorGasparrixinga a minha mãe, ele pode esperar um soco”, declarou há pouco o Papa Francisco, este surpreendente argentino,  tão empenhado em dessacralizar seu cargo, numa referência ao assassinato de chargistas e colaboradores do jornal francês humorístico “Charlie Hebdo”, vitimados por uma represália à veiculação no semanário de charges do profeta Maomé. Mas Francisco soube calibrar bem as reações que considera normais diante do desrespeito a um sentimento humano,como o de um filho em relação à sua mãe, acrescentando logo em seguida: de qualquer modo, “matar em nome de Deus é um absurdo”.

Ocorre que mesmo o soco, talvez o Papa julgasse desnecessário se a suposta provocaçãoa ele partisse de um artista como o do túmulo do cemitério e os do jornal franceses. Pois a estes seres perdoamos as inconveniências sociais. Quem pensaria em agredir o palhaço que, no circo, faz o público rir de você sentando com inconveniência no seu colo? Eles gozam deste privilégio porque, sabemos, quebram as convenções sociais na ânsia de nos mostrar aspectos da aventura de existirinsuspeitados por nós, tão presos ao medo das reações previsíveis de quem nos cerca. De outro modo, como poderíamos entender o caixão coberto de desenhos de humorno qual o chargista Tignous, uma das vítimas da represália, foi enterrado? A não ser pela vontade que guiou outros chargistas, seus colegas, de demonstrarem que,comliberdade para a quebra de convenções sociais, a morte pode ser vencida pela Arte, dando sentido à  dor da perda do colega do “Charlie Hebdo”. Dando beleza ao túmulo do Cemitério da Consolação.

 

Posso ajudar?