Mundo das Palavras

Garrincha: um dia de sorte

“Um dia de sorte”, assim Nilton Santos, registrou em sua biografia a segunda-feira em que ocorreu o único drible desmoralizante de sua carreira. Nilton – “o melhor lateral esquerdo de todos os tempos”, segundo a FIFA – foi peça fundamental do Botafogo em 729 partidas disputadas ao longo de 16 anos, ajudando seu time a se tornar campeão 20 vezes, no Brasil e no Exterior. Portanto, sequer precisava mencionar no livro “Minha bola, minha vida” o episódio do drible. Mas ele quis homenagear, Garrincha, seu companheiro de profissão criativo, surpreendente e inimitável.
 
Até o dia do drible, Garrincha era um desconhecido. Sonhava com uma vaga no Botafogo. Incluído no treino entre os reservas para ser observado, tinha aparência de alguém inaproveitável no futebol. Ao vê-lo, conta Nilton, o treinador Gentil Cardoso comentou: “no Botafogo dá de tudo, até aleijado”. 
 
O drible, segundo Nilton, foi assim: “Quando ele pegou a bola fui logo desarmá-lo. E ele, na maior desenvoltura do mundo, parecia até que já jogava ali, enfiou a bola no meio das minhas pernas e foi buscar do outro lado”. Nilton engrandece ainda mais Garrincha. Diz ter tido dupla sorte, pois, o drible ocorreu num treino e imediatamente ele foi contratado pelo Botafogo, livrando Nilton do risco de encontrá-lo, depois, num time adversário. 
 
Mais de trinta anos se passaram, desde aquela segunda-feira. E, ouvi Nilton repetir que teve sorte naquele dia, em 1986, quando ele visitava a Faculdade de Jornalismo de Uberaba, em Minas Gerais. Ele residia naquela cidade para montar uma rede pública municipal de escolinhas de futebol. E estava ali, a convite de alunos que queriam entrevistá-lo.
 
Durante a entrevista, Nilton não relembrou nenhuma glória sua. Ocupou-se inteiramente em reconstituir episódios da carreira de Garrincha. Depois do dia do drible, ele foi sendo reconhecido como grande goleador do Botafogo, e depois, da Seleção Brasileira. 
 
Então, compreendi a verdadeira “sorte” de Nilton. Não era aquela que ele apontava, com modéstia, grandeza e generosidade. Mas o encontro com Garrincha, no dia do drible. Dele, Nilton passou a cuidar como se fosse um irmão mais velho, experiente e ajuizado. 
 
Quando Garrincha morreu, em 1983, ele se insurgiu contra a ideia de velar o corpo do jogador no Salão Nobre da Câmara do Rio de Janeiro. Exigiu que a cerimônia ocorresse no grande palco das atuações de Garrincha, o Maracanã. E que fosse aberta a todos os torcedores. 
 
Até 2013, quando ele mesmo morreu, Nilton esteve empenhado na preservação da memória do genial novato, “todo torto e desengonçado”, como Garrincha lhe pareceu, no dia do drible. 
 
 

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