Mundo das Palavras

Estranhas frutas no álamo de Indiana

Na passagem dos cem anos de nascimento de Billie Holiday, em abril último, a empresa de comunicação alemã Deutsche Wellefestejou o canto refinado e inovador da cantora.“Poucos conseguiram dar vida à música como ela”, escreveu Rick Fulker, jornalista da empresa. Para ele, a liberdade de Billie na entonação de palavras e melodiasmarcou aquele canto. Que Billiedescreveu assim, no livro Lady Singsthe Blues: “Não me parece canto. É mais um sentimento, como se eu fosse tocar um instrumento de sopro”. 
 
Hoje, ninguém põe em dúvida a sofisticação da obra de Billie. Surpreendente, pois, nascida negra e pobre, nos Estados Unidos do início do século passado, viu-se abandonada pelo pai ainda bebê, sofreu estupro aos dez anos, sobreviveu em casa de prostituição a partir dos doze anos. E morreu aos 44 anos, dependente de álcool e droga.
 
Como Billie pôde criar sua obra? Suasensibilidade natural parecia submetida a um misterioso controle autocrítico que lhe dava firme contenção, afastando-a do sentimentalismo piegas. Foi assim na criação original de StrangeFruit, a “música do século XX" segundo a Revista Time. Billie começou a preparara interpretação delaquando tinha 21 anos de idade. Olhos parados, distantes, os cantos da boca repuxados, elaexpressava assim seu horror diante da visão dos corpos de Thomas Shipp e Abram Smith – jovens negros – balançando num álamo do Estado de Indiana, depois de enforcados por brancos racistas.
 
Sua voz parecia mais delicada ao cantar os versos de Abel Meeropol: “Árvores do sul produzem uma fruta estranha. Sangue nas folhas e sangue nas raízes, corpos negros balançando na brisa do sul. Frutas estranhas penduradas nos álamos. Cena pastoril do heroico Sul. Os olhos inchados e a boca torcida. Perfume de magnólias, doce e fresco, e, de repente, o cheiro de carne queimada. Aqui está a fruta para os corvos puxarem, a chuva colher, o vento sugar, o sol secar, a árvore pingar. Aqui está a estranha e amarga colheita”.
 
A cena medonha Billie tinha visto numa foto de Lawrence Beitler. Filtrada pela interpretação de Billie -contida e eloquente como a gravura criada pelo site francês www.juslisen, ilustração desta coluna -obrigou uma nação, os Estados Unidos, a se confrontar com seus fantasmas mais cruéis, escreveu José Carlos Ruy, no artigo “A fruta amarga do racismo”. Hoje, a StrangeFruitde Billie pode ser encontradano Youtube.
 

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