A leitura numa poltrona confortável da, na época, volumosa edição de domingo do jornal Estado de São Paulo já foi parte essencial do ritual do ócio, raro e merecido, dos sempre estressados paulistanos. Aquela leitura era ocasião para um relaxamento tão prazeroso, que dela quase sempre resultava a total desarrumação da ordem dos cadernos do jornal, jogados a esmo pelo chão das salas dos apartamentos.
Durante um destes reconfortantes cultos à preguiça, há exatos 21 anos, os leitores do jornal se defrontaram com uma inusitada chamada de capa. Ela remetia para reportagem de página inteira sobre um assunto até então desconhecido: o estado mantido independente do Brasil, dentro do império português, encoberto nos 8 milhões e meio de quilômetros quadrados do território brasileiro atual, como se fosse outra Atlântida, o continente desaparecido. O Gram-Para. Sozinho, corresponderia atualmente a pouco mais da metade do Brasil. Pois, englobava os dois imensos Amazonas e Pará – juntos, com quase 3 milhões de quilômetros quadrados) – e, ainda, o Acre, Rondônia, Roraima, o Ceará e o Piauí. A configuração de seu gigantismo aparecia na reportagem em ilustrações coloridas, de, pelo menos, duzentos anos.
Ao contrário do que ocorre com Atlântida, a existência do Gram-Pará está comprovada em muitos documentos. Cerca de 500 mil, revelou, o antropólogo Márcio Meira, então, diretor do Arquivo Público do Pará, e, mais tarde, presidente da FUNAI. São papéis do acervo daquele órgão – quatro milhões de documentos antigos jamais estudados de modo amplo, ordenado e sistemático, acrescentou Márcio.
Diante de mim, o diretor do arquivo se mostrou à vontade na abordagem daquele assunto, enquanto eu preparei aquela matéria para o Estadão. Porque, como me revelou também, ainda estudante universitário, durante estágio naquele órgão público, ele tinha ajudado a embrulhar e amarrar boa parte daquela documentação.
No Gram-Pará, o acontecimento mais relevante, do ponto de vista da História do Brasil, foi a chegada a Belém, em 1753, de um pequeno grupo de engenheiros-militares italianos e alemães. Eles tinham sido contratados pela administração do Marquês de Pombal, para demarcar os limites das terras portuguesas no Norte, àquela altura em negociação com a Espanha. Os dois impérios tinham assinado o Tratado de Madri, três anos antes, com a intenção de atualizar e oficializar o que, de fato, pertencia a cada um deles na América do Sul. Pois, era sabido que o Tratado de Tordesilhas, de 300 anos antes, fora completamente desrespeitado pela ocupação real do continente. Segundo este antigo tratado, ratificado em 1493, a Portugal ficava destinado, no norte brasileiro de hoje, pouco mais que uma estreita faixa litorânea de terra. Àquela pequena – mas brilhante – comissão de demarcadores competia realizar o primeiro levantamento rigoroso dos rios e das terras da Amazônia. Os quais, naturalmente, Portugal iria reivindicar para si, na novas negociações, ampliando extraordinariamente suas possessões territoriais no nosso continente.
O levantamento dos rios foi obra hercúlea e heroica, devido ao precário o apoio que a administração portuguesa podia garantir nas áreas de atuação da comissão. Os engenheiros-militares e seus companheiros estavam habituados ao gozo das comodidades trazidas pelo Século das Luzes, nos mais importantes centros culturais da Europa. E, no desempenho daquela missão, tiveram de enfrentar índios hostis, animais selvagens e doenças tropicais. Sofreram as agruras de fome, luz e calor intenso do sol. Viram-se obrigados a empreender subidas e descidas de cachoeiras em canoas instáveis. Submeteram-se a chuvas diluvianas, tremedeiras de febres, picadas de carapanãs, muriçocas, piuns, mutucas, tocandiras, formigas-de-fogo, mordidas de candirus e morcegos. Um demarcador alemão, Adão de Breunning, não suportou. Morreu pouco depois de chegar ao Gram-Pará. Outro, Manuel Gotz, entrou em depressão e se desgarrou da comissão. E, um terceiro, João Schwebel, se manteve ativo, mas chegou a vomitar sangue.
Ainda assim, a pequena equipe de demarcadores configurou o espaço físico do Gram-Pará. Quando o Brasil se tornou independente de Portugal, em 1822, não contou imediatamente com toda aquela imensa área. O que só ocorreria no ano seguinte.
Mas, à obra expansionista, coletiva, daqueles demarcadores juntaram-se outras grandes realizações pessoais deles.
Naquela segunda metade dos anos de 1700, o italiano Antonio Landi tornou Belém a cidade de arquitetura mais avançada dentro da América Portuguesa. Conterrâneo do arquiteto, Henrique Galuzzi levantou em Macapá, o Forte de São José, considerado com uma das mais brilhantes obras da Engenharia Colonial do reino português.
Igualmente produtivos foram os demarcadores alemães que conseguiram resistir às intempéries. Gerardo de Gronsfeldt criou um plano urbanístico para transformar Belém – recortada por rios – numa nova Veneza. Philipe Sturm construiu todo o equipamento urbano (imóveis, praças, pontes etc necessários ao funcionamento de uma cidade), transformando a antiga aldeia de Mariuá, na cidade de Barcelos, no Amazonas. João Schwebel criou, como desenhista, as únicas imagens existentes das localidades que se espalhavam entre Belém e Barcelos, naquela época.
O Gram-Pará desapareceu dentro do território do País, quando na totalidade de seu território, aderiu ao Brasil, já independente de Portugal. Porém, não demorou mais que duas décadas para que, em seu espaço geográfico, estourasse o maior movimento de rebeldia popular já registrado na História do Brasil – a Cabanagem. Cuja repressão provocou a morte de um quarto da população do Pará.
Desde a publicação daquela reportagem, nunca mais houve um espaço para o Gram-Pará na grande mídia. Mas ele sobrevive, dentro de sua antiga região, intensa e amplamente. Como demonstra sua população no Círio de Nazaré, a procissão religiosa que nasceu há 224 anos, na capela do palácio recém-construído por Landi. Todo mês de outubro, os amazônidas refazem o mesmo ritual religioso. Há tempos, mais de dois milhões de pessoas se reúnem nele. É a maior manifestação católica do planeta. E, como nunca foi reconhecida como tal pelo Vaticano, isto fortalece o orgulho rebelde cabano vigente na região. Por isto quando os separativistas do Sul pretenderam exibir uma postura de superioridade, na criação do mascote Sulito, provocaram espanto e escárnio no rico e pujante universo da cultura do Gram-Pará.