Mundo das Palavras

Viventes de São Paulo (1): Vandré

Pouco antes de ser consagrado no Maracanãzinho, durante um festival de música, como opositor corajoso da Ditadura Militar, no emblemático ano de 1968, o paraibano Geraldo Pedroso de Araújo Dias, aos 33 anos, já tinha a estampa de macho forte, cabeludo nos braços. Da sua cabeça deslizava para o lado direito da testa um insistente chumaço de cabelos negros fartos. O rosto ainda jovem, pouco tempo depois, seria emoldurado por barba e bigode densos. E carregaria um semblante de homem sofrido e tristonho. Sem, contudo, perder os leves tremores do vozeirão, a revelar sensibilidade na captação da conjuntura humana/social que o cercava. E que transportados para músicas se transformavam nos sons chorosos dos aboios de vaqueiros nordestinos enxertados nelas por ele. 
 
Um figuraço, com poder de sedução instantânea das universitárias contestadoras – notariam alguns jornalistas. Na época, Vandré vivia num modesto apartamento localizado entre a Praça Marechal Deodoro e a Rua das Palmeiras, no bairro de Santa Cecília. Junto com o dançarino norte-americano Lennie Dale, primeiro mestre de Elis Regina na introdução dela no complexo conhecimento do domínio de espaço num palco. Cujo comportamento público era abertamente o de um homossexual.
 
Naquele endereço, Vandré me recebeu à porta. E ofereceu uma cadeira colocada diante de pequena mesa, ambas de plástico. Ali, certamente por descuido, estava o volume de um curso de Filosofia Marxista. Material, naqueles tempos repressivos, suficiente para provocar a prisão de alguém. 
 
Ao avistá-lo sobre a mesa, Vandré, imediatamente, retirou-o dali. “Há quem não o entenda”, explicou, dando a entender que esperava a chegada de outras pessoas ao apartamento. Parecia acreditar na afluência de repórteres à sua moradia. Pois, horas antes, havia avisado às Redações dos jornais de São Paulo que ia conceder uma entrevista coletiva. Era evidente que não percebia a visão que os editores das publicações paulistanas tinham dele, antes do furor que provocou sua música "P´ra não dizer que não falei das flores" naquele festival de música. Para os quais, ele estava longe de ser uma personalidade com relevância bastante a ponto de poder provocar a realização de uma entrevista coletiva, dentro das práticas jornalísticas, ritual reservado exclusivamente para os deuses das mídias. 
 
Eu chegara a São Paulo, como Vandré, vindo de estado distante. Naquela situação, juntos na condição de imigrantes, nos separava a distância entre nossas idades. Ele, quinze anos mais velho. Estávamos frente a frente porque eu, numa penosa iniciação ao Jornalismo, trabalhava como repórter de A Gazeta, a mais antiga publicação da Fundação Cásper Líbero – já, então, instalada, na Avenida Paulista, número 900. 
 
Sozinho, com Vandré, naquele local, sentei-me na cadeira de plástico, me sentindo abandonado pelos colegas que costumava encontrar nas coberturas diárias. Havia algo de ridículo e patético naquele encontro provocado pela mania de grandeza de Vandré. E também algo de sombrio, como só mais tarde, entendi.(Continua)
  
 

Posso ajudar?