Durante trinta anos, viveu em São Paulo. Sentindo-se, muitas vezes, grato. A cidade lhe havia dado estudos, profissão, empregos, esposa, filha. Brincava consigo mesmo, pensando: “Já mereço o título de Cidadão Paulistano”.
Mas, também era verdade: nos últimos tempos não se sentia tão bem. Via a filha, criança, ficar duas horas dentro da condução da escola. Apenas no trajeto de ida. E, outras duas, na volta. Presa, ali, todos os dias. Estúpidos deslocamentos impostos pela cidade que lhe afetavam de outros modos, causando angústia pelo desperdício do precioso e limitado tempo da vida humana. Decidiu, então, que iria mudar para Londrina. Mas voltou, quando percebeu que não poderia simplesmente eliminar São Paulo de sua vida de pesquisador. A agonia se reavivou. Partiu, então, para o Pantanal. Voltou. Foi para a Amazônia. .
Um dia, lá estava ele, novamente, desembarcando em Congonhas. Resolveu: “Vou ficar no Centro, até alugar apartamento” Por lá, sabia, circulam tipos humanos que lhe provocam vontade de escrever. Disse ao taxista: “Vou ficar num hotel da Rua Guaianazes". O motorista murmurou: “Perto da Cracolândia”.
Logo começou a cruzar com aqueles tipos. Viu gente falando aos berros em celulares. Na rua 7 de Abril, uma senhora, transtornada, tentava agredir um homem aleijado. Na Barão de Itapetininga, um rapaz alcoolizado, mal se equilibrava. Mesmo assim, espancava, a golpes lentos, um vigilante de loja. Na avenida São João, um sujeito de aparência modesta insultava uma jovem. O motivo: a sombrinha dela, aberta, tinha roçado levemente sua cabeça. Na noite daquele fim de semana, entrou sem perceber no que lhe pareceu um mundo surrealista. Na avenida Vieira de Carvalho, havia agora um território livre para a homoafetividade, Com gente de todas as idades, claramente, flertando, em busca de parceiro.
Nada, porém, o espantou mais do que as rodas de samba e batucada, ao vivo, à noite, na antes extremamente elitista Avenida São Luís. Transmitidas por aparelhagens de som, ligados em volumes tão altos que transformavam a bela cadência dos sambas em gritos selvagens, profanadores do antigo charme discreto da burguesia, antes reinante nos prédios em volta.
Ainda assim, percebeu, todavia, que alguma coisa dos ensinamentos de boas maneiras dados por Marcelino de Carvalho aos paulistas tinha se salvado na brutalidade da passagem do tempo. Foi esta a impressão que teve quando notou o discreto gesto do chinês, dono de lan house, que, num dia de chuva, cedia seu guarda-chuva a um cliente.
Em outro dia, viu que a lojinha de livros usados onde podia achar literatura francesa e inglesa ainda continuava funcionando perto da esquina das avenidas Ipiranga com São João. Concluiu, então, que se sentia como Tomzé. O baiano escreveu: São Paulo “com todo defeito, te carrego no meu peito”
(Ilustração: São Paulo, num cartão postal de 1954)