São duas crianças órfãs e sem nome, no Rio de Janeiro. A maior, um garoto de sete anos. A imprensa não achou necessário identificá-lo dentro da absurda violência que matou seu pai. Tragédia na qual morreu, também, o pai da outra criança, ainda no ventre da mãe, há cinco meses.
Do garoto, sabe-se que seu corpinho ficou todo respingado do sangue de Manduca, como era conhecido seu pai, Evaldo dos Santos Rocha, um ex-integrante do Remelexo da Cor, conjunto de samba. Que, no último dia 6, passou perto de um quartel do Exército na Estrada do Camboatá, em Guadalupe, na Zona Norte, daquela cidade. Dirigia, em baixa velocidade, seu carro de cor branca, quando foi confundido com bandido. No veículo, nove – de um grupo de 13 – militares, descarregaram oitenta e três tiros. Atingindo também (nos glúteos) o sogro do músico, Sérgio Gonçalves, que ocupava o banco do carona, no carro. E levou desespero à Luciana, esposa de Manduca, ao garoto, e, à Michele, de 13 anos, afilhada do casal, sentados no banco traseiro.
Não havia armas no veículo, como acreditaram os militares. Provavelmente nele estavam sendo transportados apenas um cavaquinho, o instrumento de Evaldo, e roupinhas e fraldas de bebê. Pois, seus passageiros iam para a casa de uma amiga – grávida – da família. Onde, contribuiriam com presentes para o futuro bebê, numa reunião destinada a coletar materiais e apetrechos necessários aos cuidados dele.
Do bebê que nascerá órfão, sabe-se apenas que iria morar num barraco em Guadalupe, onde ocorreu a tragédia. Pois, numa ironia perversa, seu pai o catador de material reciclável, Luciano Macedo, de 27 anos, achava que naquele bairro havia segurança, devido à presença do Exército. Lá, ele construía o barraco com madeiras que recolhia durante seu trabalho de catador de material reciclado. Luciano queria sossego para desfrutar da companhia de Daiana Horrara, a mãe da criança em gestação. Com quem tinha vivido uma paixão de adolescente, quando ambos moravam numa favela. Fazia apenas dois anos que a reencontrara.
O menino, com o corpo coberto de respingos do sangue de seu pai, Luciano viu quando Luciana pegou-o no colo e abriu a porta traseira para mostrar aos militares que havia uma família, no carro. Luciano caminhava nas proximidades perto de Daiana. Dali, lançou-se no meio do tiroteio, Conseguiu retirar o garoto do carro. Depois, quis carregar Manduca. Mas, ao retornar ao veículo e se inclinar em direção ao banco do motorista, uma bala perfurou seus pulmões. Duas outras atingiram-no nos ombros e nos braços. Luciano sobreviveu alguns poucos dias, num hospital.
Assim, órfãs e sem nomes, as duas crianças, porém, têm sobrenomes densos, tingidos por marcas de tragédia e heroísmo. Heranças que vão pesar em seus destinos. Como?
(Ilustração: foto do site norte-americano Criative Maxx Ideas, postado na Pinterest, rede de compartilhamento de imagens)