É preciso ver o rosto de Daiana Horrara porque nele há marcas da tragédia ocorrida naquela tarde, muito calorenta, do mês passado, no Rio de Janeiro. E que só despertou interesse na imprensa por pouco tempo. Afinal, o que é a morte de um catador de papel reciclável, como Luciano, marido dela, com três tiros, no morticínio permanente da população pobre do Brasil? Sobretudo porque, na mesma ocasião, com nove tiros, morreu também o músico Evaldo Rocha. Superior socialmente a Luciano até no tipo de transporte que usava. Luciano, empregava um carrinho de mão, de madeira, no seu trabalho. Enquanto, Evaldo tinha um automóvel. Quando morreu, transportava nele a esposa, Luciana, o filho de sete anos e a afilhada do casal, além do pai dela. Iam para um evento típico de classe média, a reunião promovida por amigos de uma mulher em estágio avançado de gestação a fim de juntar os presentes que compraram para o futuro bebê. Mimos semelhantes, Daiana sabia, não ganharia a filha de Luciano, no ventre dela, há cinco meses.
Na verdade, a aspiração de Daiana e do marido era outra. Na adolescência haviam se apaixonado. Depois se perderam de vista, por alguns anos. E, quando se reencontraram, passaram a sonhar com uma vida em comum, no barraco que estavam construindo usando madeiras que Luciano também coletava. Ele mal podia esperar o nascimento da filha, tanta era a vontade de conhecer seu rosto, como contou a própria Daiana à Ana Guimarães, de O Globo, a repórter que conseguiu localizá-la, há poucos dias, e gravou a imagem dela. Com a face afetada pela tragédia. Que, hoje, sequer precisaria ser vista:
– Se a cor do carro de Evaldo não fosse a mesma do veículo ocupado pelos bandidos que tinham feito disparos de revólveres contra a unidade do Exército, de Guadalupe, momentos antes.
– Se o preconceito que faz todos os negros, como Evaldo e Luciano, serem vistos como bandidos não estivesse disseminado pelo País.
– Se levados por este preconceito e pela semelhança das cores dos dois carros os militares do Exército não tivessem disparado seus fuzis 83 vezes contra Evaldo, no volante do seu veículo.
– Se Luciano não estivesse tão empolgado com a chegada de sua filha, proximamente. A ponto de beijar todos os dias a barriga de Daiana.
– Se impelido por esta empolgação não tivesse se lançado no meio do tiroteio, para salvar outra criança, o filho de Evaldo, retirando-o do carro branco, antes de ser alvejado.
Mas nada evitou as mortes de Luciano e Evaldo. Então, é preciso ver o rosto de Daiana. Como quando, por exemplo, ela ficou ao contar para aquela jornalista: o marido, ferido, caído no chão, pedia: – Daiana, me tira do sol.