– Há dois tipos de viajantes. Um, olha os mapas. Outro, olha o espelho.
O personagem do roteirista grego Tassos Bourmet justificava, assim, o rumo dado à sua vida pela visão que tivera de sua idade, no espelho. Numa fala que mostra o aparelho intelectual-perceptivo com o qual podemos produzir “um texto” (colocar em palavras) as observações (as “leituras”) que fazemos de nós próprios. Como se o espelho fosse um mapa a nos orientar sobre o rumo a ser dado às nossas existências.
O qual, ao mesmo tempo, pode revelar realidades muito incômodas, como acentuou o antropólogo norte-americano Ernest Becker no livro “A negação da morte”.
Nele, Becker usou seu conhecimento e seu treinamento profissional para apontar as percepções que teve sobre si mesmo e sobre as demais pessoas. Ao aplicá-los na leitura dos mapas das viagens pelos mares existenciais que todos empreendemos, Becker identificou áreas nebulosas, com águas agitadas, semelhantes às das fotos que Veselin Malinov fez no entorno Farol de Felgueiras, em Portugal.
Em resumo, Becker diz que fugimos da visão de nosso futuro, estampado nos espelhos, porque nele está a presença incômoda e inafastável da morte. Tal percepção, segundo Becker, é tão dolorosa que só resta ao ser humano enlouquecer, para tentar viver sem tomar conhecimento dela. Num transtorno mental que o antropólogo aceita e eleva à categoria de digno disfarce.
Diz Becker: “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria outra forma de loucura… Louco porque tudo o que o homem faz em seu mundo simbólico é procurar negar e superar sua sorte grotesca. Literalmente, ele entrega-se a um esquecimento cego, através de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua condição, que são formas de loucura. Loucura assumida, loucura compartilhada”.
Ele próprio teve de se defrontar com esta verdade apenas um ano após seu livro receber o Prêmio Pulitzer, dado pela Universidade de Columbia, de Nova Iorque, aos trabalhos intelectuais de excelência. Becker morreu em Vancouver, aos 52 anos de idade.
Conosco ele compartilhou a loucura com a qual suportou o trágico destino humano, valendo-se das palavras. Escreveu sua obra. Pois, para isto mesmo elas foram criadas. As palavras, embora também possam ser usadas para ofender e oprimir, mantem seu poder soberano de nos retirar da angústia do silêncio de momentos aflitivos, como os da consciência da morte. Mas, com elas também podemos exprimir amor e delicadeza, criando dois daqueles temperos da vida, dos quais trata o roteiro de Tassos Bourmet.
(Ilustração: O Farol de Felgueiras, por Veselin Malinov)