Tornando-se alvo de um exaltado discurso de ódio. Hoje, gostar dele exige coragem cívica. Uma passagem num filtro ideológico, estreitado por preconceitos. Proeza de quem, ou lhe reconhece o direito decorrente de sua cidadania, ou concorda com ele. Ou… preserva dele, petrificada, a imagem dos seus vinte anos, supostamente apolítica. Aquela do Chico belo, ingênuo, bom moço, lírico. Rapaz “com quem todas as mães sonham em casar suas filhas”, como aparecia na imprensa.
Então, surge o nó da questão. Pois, o próprio Chico não esconde que, aos 15 anos, sua família o internou no Colégio de Cataguases – interior de Minas Gerais. Informando, num campo próprio do Pedido de Matrícula sobre o caráter de Chico: “Influenciabilidade, desordem, faroleiro, falta de solidariedade humana, desinteresse pelas ocupações próprias do estado e da idade”. É possível ler o documento no livro “Chico Buarque”, de Regina Zappa.
Tampouco Chico esconde que foi preso e espancado por policiais aos 17 anos por arrombar carros, para passear, com colegas, até o esgotamento dos seus combustíveis. Em vez disto, ele publicou a sua foto, feita pela delegacia de polícia, na capa do álbum Paratodos, e, nele, incluiu a música A Foto da Capa, em que se autodenomina como “larápio rastaquera”.
Além disto, nem se Chico quisesse – e, certamente, não quer, pois nada faz neste sentido -, seria possível esconder que, aos 22 anos, desnorteado ainda pelo colossal sucesso com “A Banda”, no início de sua carreira, ele se deixou manipular pela engrenagem que cria e explora comercialmente ídolos jovens. Influenciado por artistas como Wilson Simonal, embarcou numa campanha publicitária mistificadora de venda do Mug, um boneco de pano que traria boa sorte a quem o adquirisse. Fez isto como uma espécie de brincadeira, sem nada lucrar. Num momento, em que a sociedade brasileira, havia dois anos, suportava um nada engraçado esmagamento da Ditadura Militar.
Ninguém se assuste, porém. Pois, o nó da questão se desfaz, não em favor do Chico anjinho, mas do grande artista que ele se tornou, quando se sabe que não há criatividade artística sem sofrimentos, desencontros afetivos, desnorteamentos existenciais. Sem, enfim, o que é próprio da condição humana.
Vejamos.
A maioria das supostas “falhas de caráter” que preocuparam a família de Chico, podiam ser apenas manifestações de imaginação fértil e de saudável rebeldia juvenil.
Aquela experiência de detenção policial – com espancamento – terminaram munindo Chico do conhecimento de que ele precisava para criar músicas sobre transgressores miseráveis como “Geni” e “Meu guri”.
A descarada exploração de sua imagem na campanha de venda do Mug deu-lhe a indignação que lhe permitiu escrever a peça Roda Viva, devastadora denúncia da fabricação ilegítima de ídolos de jovens. Depois daquela experiência, nunca mais Chico emprestou sua imagem para alguma campanha publicitária comercial.
Podemos, então, serenamente pensar que nós, brasileiros, temos um artista apto a repetir a frase de Públio Terêncio Afro, o antigo escravo romano, mais tarde, poeta e dramaturgo: “Sou homem e tudo o que é humano me interessa”.
(Ilustração: Chico, jovem, na campanha de venda do Mug)