A equipe econômica do presidente Jair Bolsonaro busca a aprovação de uma reforma na Previdência Social desde o final de fevereiro, quando apresentou ao Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 06/2019. A proposta recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados e, atualmente, está em discussão em Comissão Especial. Em meio à disputa política, parlamentares já ameaçaram analisar propostas alternativas de reforma e categorias profissionais protestam contra as mudanças.
Contudo, mesmo que o projeto receba a aprovação definitiva da Câmara dos Deputados e do Senado, o texto atual da reforma poderá parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Isso porque, segundo especialistas, são vários os pontos no projeto que entram em conflito com a Constituição, mesmo após ter passado pela CCJ da Câmara, órgão responsável por analisar possíveis inconstitucionalidades.
“A proposta fere direitos fundamentais sociais e viola o direito fundamental à previdência, visto que habitantes de muitas localidades brasileiras têm expectativa de vida inferior a 60 anos”, avalia Ruslan Stuchi, sócio do escritório Stuchi Advogados.
A PEC 06/2019 prevê uma idade mínima para se aposentar, no setor privado, de 62 anos para mulheres e de 65 anos para os homens. Também iguala a idade mínima de professores e trabalhadores rurais, sejam homens ou mulheres, em 60 anos. Já o valor integral do Benefício de Prestação Continuada (BPC), de um salário mínimo (R$ 998), poderá ser recebido apenas aos 70 anos por pessoas com deficiência e idosos em situação de miserabilidade, caso a proposta seja aprovada.
Atualmente, no setor privado, as mulheres podem ser aposentar aos 60 anos. Professoras não têm idade mínima e, trabalhadoras rurais aposentam-se aos 55 anos. A integralidade do BPC, por sua vez, pode ser recebida hoje aos 65 anos.
De acordo com o especialista, tais mudanças têm o efeito de abolir direitos e garantias individuais e, por este motivo, não poderiam ser alvo de deliberação no Congresso, conforme determina o art. 60, parágrafo 4º da Constituição Federal. “O miserável não chegará aos 70 anos para receber o BPC; os professores não terão saúde física e mental para exercer o magistério até os 60 anos e a trabalhadora rural não terá saúde física para segurar sua enxada até os 60 anos. O texto configura ofensa à cláusula pétrea”, afirma.
Erick Magalhães, especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Magalhães & Moreno Advogados, alerta que, atualmente, apenas 0,3% das pessoas com 65 anos ou mais ocupam vagas no mercado de trabalho. “Logo, não havendo vagas de trabalho para a população com a idade de aposentadoria pretendida pelo governo, ou se insuficientes, certamente uma grande parcela da população não conseguirá cumprir com os requisitos exigidos na proposta de reforma. Vale frisar que o artigo da Constituição classifica o direito ao trabalho como um direito social e fundamental dos brasileiros. A partir disso, como pode exigir o governo tal idade mínima se o brasileiro com 65 anos não consegue emprego e se não há emprego para toda a população nessa faixa etária?”, questiona.
Questão econômica
Nas contas do governo, se aprovada, a reforma da Previdência deve gerar uma economia prevista de R$ 1,2 trilhão dos recursos públicos no prazo de 10 anos.
Especialistas apontam que o projeto do governo entra em inconstitucionalidades em razão de focar no enxugamento dos gastos públicos e deixar de lado a questão social. Na visão de Ruslan Stuchi, a PEC foi apresentada com o argumento de que irá diminuir os benefícios dos ricos e aumentar as vantagens dos pobres, mas as classes mais vulneráveis devem sair prejudicadas na hora de se aposentar. “Na tensão entre os direitos sociais de todos e os lucros de poucos, estes últimos são preferidos, o que é gravíssimo em qualquer país”, critica.
O advogado previdenciário Erick Magalhães defende que a Carta Magna apresenta em sua concepção uma ideia de justiça social que é abandonada pelo projeto de reforma. Isso porque a Constituição brasileira traria um equilíbrio entre as questões relacionadas ao capital e ao social.
O capital é retratado na Constituição pelo art. 170, que afirma que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, observando, entre os seus princípios, a “redução das desigualdades regionais e sociais”. Já a questão social, por sua vez, está prevista no art. 193, que determina que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
Para o especialista, o fato do projeto de reforma permitir a criação de um sistema previdenciário com base na capitalização irá conflitar com o art. 170 no momento em que a ordem econômica não garantir uma existência digna à população. “O governo ignora experiências em países vizinhos, como a do Chile, que demostraram que o modelo pode resultar em aposentadorias abaixo do salário mínimo, em mero lucro para instituições financeiras e até no aumento do índice de suicídio entre a população idosa”, critica.
No atual sistema previdenciário aplicado no Brasil, que tem como base a repartição, os trabalhadores custeiam o sistema em conjunto com recursos das empresas e do governo. Já no modelo de capitalização, mantêm contas individuais geridas por bancos e por outras instituições financeiras.
“Ao impor um sistema de capitalização com contribuições que partam somente do trabalhador, a reforma ofende o princípio da vedação ao retrocesso social”, observa ainda Leandro Madureira, especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Mauro Menezes & Advogados.
Conforme o especialista, a mudança potencializa a diminuição da proteção social garantida ao trabalhador. Contudo, para ele, ainda é preciso ser prudente ao prever as consequências sociais da reforma, caso aprovada. “A priori, o aumento de requisitos de elegibilidade faz crer que as desigualdades serão acentuadas. Por outro lado, há regras no ordenamento jurídico atual que favorecem as aposentadorias precoces. Mas a reforma traz um regramento rígido e descolado da realidade dos trabalhadores brasileiros”, analisa.
Para João Badari, sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados, a aprovação da reforma da Previdência é importante desde que haja ajustes. “A reforma é necessária para combater privilégios. Porém, o texto apresentado necessita de certos ajustes, pois a justiça social foi ameaçada em prol da melhoria econômica. Haverá muita judicialização e o STF dará a palavra final sobre tal constitucionalidade”, prevê.
Na visão de Ruslan Stuchi, as mudanças propostas na reforma ainda devem ser muito debatidas por meio de ações de inconstitucionalidade no caso de serem aprovadas no Congresso. “Acredito que se busque outras alternativas, como acontece com a Reforma Trabalhista que vem utilizando de alguns instrumentos normativos e jurídicos para buscar esclarecimentos”, conclui.
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