Educação

Dilma começa a escrever sua história muito antes de se converter ao “Lulismo”

Durante a semana da Pátria, acompanhe a série de quatro reportagens sobre ex-guerrilheiras no período da ditadura militar no Brasil

Os analistas políticos associam o desempenho da presidenta Dilma Rousseff unicamente à sua origem imediata – o lulismo – sem levar em conta que ela é uma pessoa marcada por uma experiência muito mais visceral do que a da convivência com o ex-presidente Lula. Por isto, se surpreenderam quando ela deliberadamente se comportou sem a elogiada habilidade política de Lula, e, iniciou uma faxina ética na administração pública. Ela interrompeu a faxina. Mas ninguém acreditou que por decisão livre.

Aquela falta de habilidade de Dilma agradou a opinião pública. E deu margem para o surgimento da esperança de que a presidenta venha a demonstrar não ser clone de Lula. O que, agora, pareceu ter sido anunciado por um compromisso jamais assumido por Lula, de forma tão direta, já na sua posse. O de acabar com a miséria no país.

O HOJE começa a publicação de uma reportagem de pesquisa sobre o que foi aquela experiência visceral. Vivida por Dilma, por uma companheira sua, hoje esquecida, Maria de Lourdes Rego Melo e pelas outras presas políticas, submetidas à tortura nas prisões da Ditadura Militar Pós-1964. Certamente mais determinante na definição dos passos e atos de nossa presidenta do que a da associação com Lula.

O quanto esta dura experiência, que as mulheres experimentaram de um modo ainda não suficientemente estudado, pode estar guiando Dilma, na presidência? Sobretudo, na promessa de assegurar a sobrevivência aos brasileiros sem recursos, através da ação do Estado? Em que medida a atuação política dela pode, em última instância, conter essencialmente um compromisso suprapartidário de defesa da vida, como o que salvou aquelas mulheres da loucura e da morte?

Estas perguntas afetam a todos os brasileiros porque Dilma ocupa a presidência do país. E, por isto, são oportunas na aproximação da celebração da Semana da Pátria. Antes marcada pelo militarismo da Ditadura. Mas que brasileiros buscam reinventar, desde a recuperação da democracia no país.

É a procura de respostas a elas, que o HOJE oferece agora a seus leitores ao longo desta semana. Aqui a primeira parte.

Mulheres eram exceção entre os presos políticos

Elas não eram muitas. Apenas 113, segundo o Observatório da Mulher, entre 3,7 milhões de pessoas que viviam na cidade de São Paulo, em 1970.

Por isto, os nomes de Dilma Rousseff e Maria de Lourdes Rego Melo são facilmente localizáveis, na lista de presas políticas de São Paulo, daquele período, postada na internet, por aquele observatório. Quase todas tinham, em média, pouco mais de 20 anos de idade e cursavam alguma faculdade. Foram presas por militarem em organizações clandestinas que usavam armas para enfrentar a Ditadura Militar.

Todas foram torturadas. Supostamente, para que revelassem informações necessárias à repressão de suas organizações. Algo que ocorreu também com seus companheiros, homens. No entanto, as características naturais de seus corpos e suas emoções tornaram diferentes o modo como foram atingidas pela tortura e como a ela reagiram. Embora, isto não tenha sido ressaltado no amplo memorialismo produzido por ex-presos políticos, depois da aprovação da Lei da Anistia, em 1979.

Quando em 1985, foi lançado com o apoio do arcebispo de São Paulo dom Paulo Evaristo Arns, o livro sobre tortura a presos políticos considerado ainda hoje como a de maior credibilidade, o "Brasil, Nunca Mais", nele foi incluído um único capítulo, com cinco páginas, sobre mulheres. Nos seus outros 20 capítulos, que cobriram 307 páginas, os depoimentos das prisioneiras políticas ficaram misturados aos de seus companheiros de militância.

Somente quatro anos depois, em 1989, as particularidades dos efeitos do uso das torturas políticas nas prisioneiras da Ditadura Militar, ocuparam todo o espaço de uma obra. A de um filme-documentário intitulado "Que bom te ver viva", com roteiro e direção de Lúcia Murat.

A cineasta conseguiu reunir um rico material – composto de filmes caseiros e fotos de álbuns de família, além de notícias sobre a repressão política, em jornais da época -, relacionado a oito ex-presas políticas. Com as quais Lúcia ainda gravou imagens e depoimentos. Assim como com pessoas ligadas a elas – amigos e amigas, maridos, mães, e, filhos. Já nestes últimos depoimentos chama a atenção uma particularidade da condição feminina, a intensidade maior com que a tortura das presas atingiu seus parentes diretos como mães e filhos.

Hoje, estas duas obras – o livro e o filme – podem ajudar a entender atitudes e reações daquelas mulheres, inclusive as de Dilma e a opção radical adotada por Maria de Lourdes.

As torturas Naquele período, as torturas às mulheres ocorriam na fase inicial da prisão delas. Em seus interrogatórios, como aconteceu também com seus companheiros de luta armada, revela o livro "Brasil, Nunca Mais", foram empregados os temidos instrumentos usados para produzir sofrimento físico nas prisões da Santa Inquisição, na Idade Média, como a coroa de ferro que esmaga crânios humanos, e, a "cadeira de dragão", preparada para maltratar o corpo de quem fosse amarrado nela – com espinhos de ferro, nas antigas prisões, e, com placas eletrificadas nas prisões da Ditadura Militar do Brasil.

As prisioneiras que sobreviveram a estes interrogatórios, com emprego de maior violência física, se preocuparam muito com a preservação de sua fertilidade, uma regalia dada pela natureza apenas a elas. O livro "Brasil, Nunca Mais" registra casos, ocorridos em todo o Brasil, de mulheres presas pelos órgãos de repressão política quando estavam grávidas. E, que, por isto, ficaram ainda mais vulneráveis. Um deste casos, foi o da estudante de 25 anos, de Brasília, Hecilda Mary Veiga Fonteneles de Lima. Ela entrou num estado de angústia profunda com a ameaça de parto prematuro. Seu filho nasceu com "acentuados reflexos somáticos", devido à coação psicológica que ela sofreu. Em outro caso, uma prisioneira grávida, a vendedora Helena Mota Quintela, de 28 anos, de Recife, foi ameaçada de ter o filho "arrancado à ponta de faca".

Entre as oito mulheres entrevistadas por Lúcia Murat, três foram torturadas durante um período de gravidez. Uma delas, Regina Toscano, do Rio de Janeiro, perdeu seu filho. Em seu depoimento, ela revelou ter sido presa quando distribuía panfletos políticos. Disse que violência exercida especificamente contra as mulheres começou já naquele momento: "Eu fui despida e procuraram arma até na minha vagina, embora soubessem que eu não tinha. Foi algo feito para me degradar".

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