Há duas edições passadas Guarulhosweb começou a publicar uma reportagem de pesquisa sobre como jovens mulheres da geração da presidenta Dilma Rousseff, inclusive ela mesma, enfrentaram e reagiram à tortura nas prisões políticas da Ditadura Militar, do Brasil, entre os anos de 1969 e 1973. A tortura, pela sua violência, levou à loucura ou à morte algumas daquelas jovens. As que sobreviveram contaram como foram atingidas na sua condição de mulher à cineasta Lúcia Murat e aos organizadores do livro "Brasil, Nunca Mais". Na última parte já publicada, elas descreveram os danos psicológicos que sofreram.
Hoje, prossegue a publicação da reportagem, com a expectativa de contribuir para a renovação em curso no país, nos últimos anos, do sentido da celebração da Semana da Pátria. (leia aqui a primeira e a segunda parte da reportagem)
Os danos físicos sofridos pelas presas políticas submetidas à tortura foram muito mais divulgados, a partir de 1978, quando acabou a censura aos veículos de comunicação, que os danos psicológicos.
Em outra matéria da Revista Piauí, assinada por Luiz Maklouf Carvalho, e publicada em julho de 2009, o jornalista escreveu: "Quando Dilma Rousseff era ministra das Minas e Energia, perguntei-lhe em que condições de saúde deixara a prisão. "Ninguém sai disso sem marcas", respondeu Dilma". Segundo Maklouf, Dilma perdeu 10 quilos, na cadeia. Ele prosseguiu: uma das marcas às quais Dilma se referiu foi "uma disfunção na tireóide, glândula no pescoço cuja principal função é a produção e armazenamento de dois hormônios que auxiliam a regular a taxa do metabolismo e afetam outros órgãos".
Dilma disse ainda: "Um ano depois que saí da cadeia, a minha tireóide estava completamente detonada. Foi a forma como o meu organismo reagiu a tudo aquilo. Desenvolvi um hipertiroidismo [produção excessiva de hormônios] e depois um hipo [o contrário]. Foi uma somatização".
A soma do danos físicos e psicológicos provocados pela tortura criou nas presas políticas um trauma comparável a dos judeus, prisioneiros dos nazistas, na Segunda Guerra Mundial, assegurou o psiquiatra marido de Estrela quando ela deu seu depoimento ao filme de Murat. Naquele momento, o psiquiatra vivia com a ex-presa política, havia cinco anos. Segundo ele, este trauma se tornou uma lembrança permanente, e, para sempre. Mas, que não pode ocupar as mentes das ex-presas políticas todo o tempo, porque, nelas, tem de existir espaço para que a vida continue. "O problema é que o equilíbrio neste tipo de situação é impossível", ele acrescentou. E concluiu: "De modo que o sofrimento está garantido para o resto da vida".
"Descobri que a melhor coisa do mundo era ser mulher"
O espaço na mente das ex-presas políticas para a continuidade da vida, mencionado pelo psicanalista, foi aberto exatamente pela área do corpo feminino onde os torturadores podiam atingir mais intensamente as presas políticas: a ligada à reprodução humana, sobretudo, a genitália e o útero. Área na qual uma escritora atéia como Simone de Beauvoir, no livro "Segundo Sexo", localizaria a origem da atração das mulheres pelo mistério. Outra força atávica, como o medo de barata, explorado pelos torturadores. O qual, não por acaso, é ligado por alguns estudiosos à repulsa à idéia de penetração do inseto na genitália. Um medo, portanto, associado também à preservação da procriação.
Maria do Carmo, aquela ex-presa que adoece só por pensar em desgraça, disse à Murat, sobre a situação conflitiva gerada pela sua prisão: "Eu só me reconciliei com esta situação na minha primeira gravidez. Descobri que a melhor coisa do mundo era ser mulher. Descobri por que o homem tem de mandar no mundo. Porque a barriga dele só produz cocô. Deve ser terrível. E a mulher produz vida. Foi uma descoberta tão bonita que me fez compreender que ser mulher é o maior barato".
Por sua vez, Regina Toscano, cuja primeira gravidez foi perdida na prisão, afirmou à cineasta: "Durante a cadeia toda, o que realmente me segurou foi a vontade e a certeza de que eu ia ter outro filho que representava para mim vida. Se os torturadores estavam querendo me matar, eu tinha de dar uma resposta de vida. E para mim ter um filho simbolizava e simboliza a resposta de que a coisa continua, que a vida está aí, que as coisas não acabam. E a primeira coisa que eu fiz, ao sair da cadeia foi engravidar. Daniel nasceu representando muito para nós, para mim, a vida. E os outros filhos que eu tive, André e Cecília, continuaram fortalecendo este símbolo. Eu acho que a coisa mais forte que eu tenho são as crianças. Se alguém um dia quis me matar, por eu estar lutando, eu dei uma resposta com a vida. Com a vida dos meus filhos".
O significado psicológico da procriação para as presas políticas pareceu remeter à ordem cósmica, quase religiosa, da mãe natureza. Como se o corpo feminino fosse dotado daquela sacralidade que não pode ser violada, sob pena de se ameaçar poderosas forças naturais. Sua densidade pode ser observada nos seguintes detalhes. Sete das oito ex-presas cujas trajetórias pesquisadas por Murat, diante das câmaras salientaram sua nova condição, a de mãe, quando o filme foi rodado. Destas, duas, tinham três filhos; duas, dois filhos, e todas as outras três, um cada.
"Meu filho livre"
Entre as sete, duas ficaram grávidas de companheiros de luta armada, igualmente presos e torturados. Uma delas, Jessie Jane engravidou quando obteve o direito de ter visitas íntimas, de Colombo, um companheiro com quem ela havia sequestrado um avião. Como se a gravidez fosse um experiência que devesse ser compartilhada apenas com outra pessoa para quem ela tivesse um significado igualmente profundo.
Com as duas ex-presas destacadas na lista do Observatório da Mulher isto também aconteceu. Dilma, cuja única filha nasceu de sua ligação com o ex-guerrilheiro Carlos Araújo. E Maria de Lourdes, mãe de três filhos, todos de Humberto Vellame, artista plástico que aderiu à organização armada dela, foi preso e também torturado.
Nestes quatro casos, a soma dos dois elos – o da prisão política com tortura, e, o da geração de uma criança – iria ligar, definitivamente, estes parceiros, num convívio emocionalmente intenso, mesmo quando cada um deles se juntou, depois, à outra pessoa.
O caso mais impressionante, neste grupo, foi o de Criméia de Almeida, combatente da guerrilha do Araguaia. Em seu depoimento à Murat, ela revelou que foi obrigada a deixar a guerrilha e ir para São Paulo porque havia ficado grávida de um guerrilheiro. Teve seu filho na prisão, "cercada de metralhadoras", disse ela. Durante anos, ficou sem notícias do pai porque a censura militar não permitia a veiculação de informações sobre a guerrilha. Quando a censura acabou, ela soube que seu parceiro, o irmão e o pai dele – pai, tio e avô de seu filho -, tinham sido mortos pelo Exército.
À Murat, Criméia disse: "Para mim a gravidez marcou muito, teve seus aspectos positivo. Ter um filho é uma coisa gostosa e eu senti isto, mesmo na prisão. E foi uma situação difícil, mas foi uma sensação gostosa. Parece até impossível que a gente possa sentir isto, na prisão. Eu pensava o seguinte: eles tentam acabar comigo e nasce mais um aqui mesmo, onde eles tentam me eliminar. Onde tentam acabar com as pessoas, a vida continua. Eu sentia o nascimento do meu filho como se ele estivesse se libertando do útero, como um sinal de liberdade. Meu filho livre".