Oito ex-presas políticas se dispuseram a ajudar a cineasta Lúcia Murat a produzir o documentário "Que bom te ver viva" sobre como elas foram atingidas pela tortura, nos interrogatórios dos órgãos de repressão política da Ditadura Militar.
Elas eram militantes de organizações de oposição armada aos militares. Como Dilma Rousseff e Maria de Lourdes Rego Melo. E foram muito torturadas.
Daquelas oito ex-presas, sete tiveram filhos, depois da prisão. Como Dilma e Lourdes. E consideraram a gravidez a melhor resposta que o corpo delas poderia dar às torturas.
Mas, se gerar filhos as fez permanecer socialmente produtivas, não evitou que ainda carreguem danos físicos e psicológicos da tortura. A necessidade de lidar com estes danos levou duas ex-presas ao silêncio.
E delas que tratará esta última parte da reportagem de pesquisa preparada pelo Guarulhos HOJE. Uma colaboração para o esforço que os brasileiros têm feito nos últimos anos para dar um novo sentido à Semana da Pátria, comemorada no início deste mês (leia as três primeiras reportagens aqui).
Uma única ex-presa política procurada por Lúcia Murat se negou a falar sobre as torturas que sofreu. E sobre a importância da gravidez para as mulheres torturadas. E mais: ela não se identificou, nem mostrou o rosto, como fizeram as demais. Porque quis salientar outra coisa. Depois, explicitado num texto entregue à Lúcia, sem sua assinatura.
O objetivo do silêncio dela foi preservar seu mergulho na sua própria intimidade, tão profundo como o experimentado pelas ex-presas na gravidez. Mas diferente do delas.
O privilégio de fazer estes tipos de mergulho, usufruído pelas mulheres, foi observado pelo psiquiatra Daniel Chutorianscy. Ele conviveu com uma das entrevistadas de Lúcia Murat, Estrela Bohadana. E há poucos meses, lançou um livro de contos, pela Garamond. Na resenha do livro, a editora diz que, como psiquiatra, Daniel foi "levado a conviver cotidianamente com as questões nodulares da existência humana: a vida, a reprodução – leia-se amor e sexualidade -, a morte". Esta experiência aparece na fala de um personagem livro, em trecho postado pelo psiquiatra no site da Garamond. A mulher, diz o personagem, provoca "o movimento mais intenso que existe em toda a natureza", quando toca seu corpo em busca de prazer. Há "nas suas entranhas, algo de selvagem, de infinito, de ausência e suspensão do tempo", acrescenta. Por fim, o personagem menciona a mãe natureza e associa o centro do seu útero com o fundo de um oceano.
Estrela fez um comentário sobre o livro, incluído na resenha,com o qual pareceu se referir às conversas que teve com o psiquiatra. Disse que nos contos dele: "vida e arte se confundem". Título do livro de Daniel: "A um prazo da dor".
Complexidade do corpo feminino fez anônima se diferenciar
Foi esta complexidade do corpo feminino, tema de Daniel, que permitiu à presa política mantida anônima do filme de Murat se diferenciar de suas companheiras. Em sua única manifestação, feita por meio do texto entregue à cineasta, ela declarou: "Sou como todos nós, um elo na corrente evolutiva da Humanidade". Por isto, queria afastar todas as emoções violentas. Inclusive aquelas que interferiram na aspiração mantida pela geração dela. A de se devotar ao bem da Humanidade, reduzindo o sofrimento das pessoas, através da militância política armada. E que reapareceriam num depoimento sobre as torturas. Pois, ela havia descoberto que só era possível construir, criar algo, "com muita serenidade, equilíbrio e compaixão". "Por nós próprios e por todos os homens", acrescentou. Sua manifestação, ela encerrou assim: "Que todos nós possamos ser felizes".
Manter o silêncio para neutralizar as emoções violentas impostas pela tortura. E ajudar às outras pessoas. Estes propósitos têm sido mantidos de forma ainda mais radical por Maria de Lourdes Rego Melo. Ela foi a única presa política da Ditadura Militar que, pela coragem como enfrentou os interrogatórios na prisão, impressionou até o delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe dos torturadores, em São Paulo. Fleury declarou isto numa matéria publicada pela Revista Realidade, em abril de 1971.
Lourdes tinha cerca de 28 anos, quando foi presa. Mas ela é de estatura tão pequena que os policiais a chamavam de Baixinha. Havia, na época, se casado com o artista plástico Humberto Vellame, também preso por sua militância política.
O apartamento em que os dois viviam, na Rua Costa, em São Paulo, tinha sido alugado pela organização de luta armada a que Lourdes pertenciam, a Aliança Libertadora Nacional. Ali, eram vizinhos do Teatro Record, onde um jovem artista baiano começava a se projetar. Um ex-colega de turma de Lourdes, na Faculdade de Filosofia, de Salvador. Seu nome: Caetano Veloso.
O estado em que as torturas deixaram Lourdes, após cada interrogatório foi presenciado por Vinicius Caldeira Brant, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes. Ele também havia sido torturado na prisão, com choques elétricos e espancamentos de cassetete, pedaços de ripa de madeira e mangueira de borracha.
Em novembro de 2009, o Ministério Público Federal quis processar autoridades estaduais de São Paulo – como Paulo Maluf, Romeu Tuma, entre outros – pela cumplicidade no ocultamento de corpos de presos políticos assassinados pela Ditadura Militar. O depoimento de Vinicius foi transcrito num documento preparado pelos procuradores Eugênia Fávero, Marlon Weichert, Jefferson Dias, e, Adriana Fernandes. No depoimento, Vinicius disse que viu Maria de Lourdes "várias vezes carregada para a solitária em que se encontrava presa, em estado de total esgotamento, pelas bárbaras sevícias a que fora submetida".
Lourdes hoje vive só na Bahia
Lourdes e Humberto hoje estão oficialmente separados. Mas os ligam os três filhos que tiveram quando saíram da prisão. Há trinta anos, Lourdes descobriu que seu corpo, maltratado pela tortura, seria capaz de realizar algo, além de gerar filhos. Poderia transportar a energia que os orientais acreditam integrar as pessoas ao universo cósmico.
Atualmente, Lourdes vive sozinha, numa chácara, no interior da Bahia, de acordo com os ensinamentos de Meishu-Sama, criador do Johrei. Uma prática altruísta, espécie de terapia, obtida pela aproximação física, sem contato, entre duas pessoas que devem permanecer caladas, em estado de concentração.
O ambiente afetivo que a cerca apareceu numa dedicatória de monografia de Mestrado, postada na internet em 2007. Diz a dedicatória: "A meus pais: Humberto Vellame Miranda e Maria de Lourdes Melo Vellame. Aos meus irmãos: Julio e Raul. À minha companheira: Nita. A meu filho: Rodrigo. Pelo apoio e compreensão. A Deus e a meu mestre Meishu-Sama. Pela proteção. Lucas Melo Vellame".
Na internet há outras postagens sobre Lourdes. Mas se referem unicamente à sua última manifestação pública, feita com os traumas das torturas, ainda nos anos de 1970, antes de silenciar definitivamente.
Quase dez sites trazem a denúncia dela: Joaquim Câmara Ferreira, sucessor de Carlos Marighela no comando da Aliança Libertadora Nacional, foi assassinado quando já estava imobilizado na prisão. E não no momento em que foi preso, como alegava a polícia política da época.