O caráter extraordinário da eleição de hoje na Alemanha não se deve ao suspense em torno de quem governará nos próximos quatro anos, já que a democrata-cristã Angela Merkel é favorita para vencer o social-democrata Martin Schulz. O que dá à votação um peso inédito é o provável ingresso do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) no Parlamento – o que marcará o retorno de movimentos de extrema direita e de grupos neonazistas ao Bundestag pela primeira vez desde 1945.
Mais de 60 milhões de eleitores são esperados. Pela legislação eleitoral alemã, de voto distrital misto, um partido precisa alcançar em média 5% do total de sufrágios para superar a cláusula de barreira que impede a fragmentação do poder no Legislativo. Desde o fim da 2ª Guerra e da dissolução do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, extrema direita), o partido de Adolf Hitler extinto há 72 anos, nenhum movimento de extrema direita havia conseguido superar a restrição.
Criado há quatro anos com o objetivo de denunciar a chegada de imigrantes à Alemanha, o AfD está prestes a conquistar um espaço no cenário político. Pesquisas divulgadas na sexta-feira indicam que o movimento liderado pela ativista Alice Weidel tem chances concretas de superar dois partidos tradicionais, o Partido Verde e o Partido Liberal-Democrata (FDP), assim como a esquerda radical do Die Linke.
Se confirmar os prognósticos, será a terceira força do país, com 11% a 13% dos votos. À frente ficariam o partido União Democrata-Cristã (CDU), de Angela Merkel, que teria de 34% a 36%, e o Partido Social-Democrata (SPD), de Martin Schulz, de 21% a 22%.
“Se o AfD de fato entrar no Bundestag (Câmara Baixa), será a primeira vez em 72 anos que os nazistas poderão falar no interior do Parlamento”, disse o vice-chanceler e ministro das Relações Exteriores, Sigmar Gabriel.
Como afirma a Frente Nacional (FN) na França, o AfD se intitula “nem de direita, nem de esquerda”, mas sua composição é clara: grupos de direita nacionalistas e ultraconservadores, apoiados por uma miríade de pequenos grupos populistas, neofascistas e neonazistas.
Entre suas bandeiras estão causas como o ceticismo em relação à União Europeia e às mudanças climáticas, mas sua mais enfática plataforma é a islamofobia e a defesa da expulsão de imigrantes e refugiados.
Não por acaso, o acolhimento de estrangeiros após a crise dos refugiados de 2015 e a gestão dos 1,3 milhão de pedidos de asilo foram dois dos grandes assuntos da campanha. O AfD se consolidou como o maior partido anti-imigração, atraindo um eleitorado insatisfeito com o “sistema”.
A fama de partido implacável com a presença de estrangeiros preocupa os maiores interessados: os candidatos à concessão de refúgio. Nessa semana, a reportagem do Estado visitou abrigos de refugiados na região de Berlim, o primeiro no extinto aeroporto de Tempelhof, onde 2 mil pessoas estão acolhidas, e o segundo em Heim, em uma residência para 200 pessoas.
Para eles, a ascensão política do AfD é uma ameaça ao desejo de permanência na Alemanha. “Gosto de Angela Merkel, mas creio que tanto ela como Schulz serão bons para refugiados”, ponderou Fahim Mohamadi, engenheiro afegão de 27 anos, que chegou à Europa depois de cruzar a pé o Afeganistão, o Irã, a Turquia, a Grécia, a Macedônia, a Sérvia, a Croácia, a Hungria e a Áustria.
Entre os refugiados, é recorrente o desejo de que Angela Merkel seja reeleita para que seus processos de legalização não sejam interrompidos. Já o AfD é visto como a certeza de que, se assumissem o poder, o pedido seria recusado e a expulsão, certa. “Gosto de Merkel porque ela está empenhada em conseguir trabalho para os refugiados”, diz Nizambudin Al Suri, de 26 anos, ex-soldado do Exército afegão, hoje abrigado em Tempelhof. “Mas eu tenho a sensação de que as coisas não têm avançado para os refugiados. Já estamos aqui há dois anos e ainda não temos documento algum, passaporte, nada”, reclamou.
Estudante de história que abandonou a universidade para imigrar para a Europa, Enola Azizi, de 20 anos, está decidido a ficar. Como provas de integração à sociedade local, diz, está estudando alemão e se interessa pela política local. “Na escola onde estudo alemão, vejo que todos os alunos de outros cursos estão falando sobre as eleições, mas eu não falo nada. Só observo e torço por Merkel.”
Às portas de um quarto mandato, a chanceler tende a ser a escolhida pelo mesmo motivo pelo qual tem a simpatia dos refugiados: a estabilidade que representa para o país. Para Manès Weisskircher, pesquisador do Instituto Universidade Europeia de Florença, na Itália, Merkel soube construir em torno do acolhimento dos refugiados uma nova imagem, tanto na política nacional como internacional.
“No segundo semestre de 2015, Angela Merkel se reinventou mais uma vez. Desde então, ela tornou-se amplamente conhecida, na Alemanha e no exterior, como uma garantia liberal ao asilo e à imigração”, entende o especialista.
Além de consagrar a chanceler como a mais longeva líder política em atuação na Europa, a votação também é a última do turbulento ano político no continente, que teve eleições delicadas na Holanda e na França, com risco de crescimento da extrema direita e de movimentos anti-União Europeia após o Brexit. Em 2018, as atenções se voltarão à Itália, última das potências europeias a voltar às urnas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.